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quinta-feira, 16 de maio de 2019

A QUESTÃO DE GROSSOS

Por Geraldo Maia

Para se entender essa questão, é necessário lembrar que desde o início da sua colonização, a região da ribeira do Mossoró se prestou muito bem para a criação do gado, principalmente pela presença de lambedores salinos. O gado que era produzido na região, era exportado principalmente para a capitania de Pernambuco, principalmente para os engenhos de cana de açúcar, que usavam não só a carne, mas as juntas de boi para mover as moendas. Mas pela longa viagem, a boiada que saía de Mossoró chegava a seu destino bastante abatida, o que acabou se tornando inviável comercialmente. Aproveitando a abundância de sal que existia na região, resolveram charquear a carne, como já era feito no Ceará, pois dessa forma a carne podia sem enviada para grandes distâncias sem prejuízo da qualidade. Assim foram instaladas oficinas de charqueamento em Mossoró e Açu. A medida causou, no entanto, descontentamento tanto da parte do Ceará quanto de Pernambuco. Os cearenses não gostaram da concorrência das charqueadas mossoroenses e os pernambucanos reclamavam da falta de boi para tração dos engenhos.  Medidas foram tomadas para acabar com as charqueadas do Rio Grande do Norte, inclusive fechando os portos de Açu e de Mossoró. As carnes secas só poderiam ser fabricadas no Ceará, conforme determinações reais. Mas para charquear a carne, o Ceará precisava do sal que era produzido no Rio Grande do Norte. Ainda em meados do século XVIII, as autoridades da Vila do Aracati, hoje município cearense, solicitaram à Coroa portuguesa o aumento de seu território. A intenção era ficar com parte das salinas do rio Mossoró. O lucro das charqueadas estava ameaçado pelo estanco do sal, monopólio da comercialização concedida pela Coroa a particulares. Apenas as capitanias de São Tomé, Rio Grande e Pernambuco eram produtoras. Elas podiam consumir o sal extraído em seus terrenos, mas não comercializar o produto com as capitanias vizinhas. Isto fazia com que o Ceará consumisse o sal português com seus altos impostos. A única maneira de diminuir o prejuízo era aumentar o seu território até as salinas. O Ceará, por intermédio da Câmara da Vila de Aracati, sugeriu ao governo de Lisboa o deferimento de sua antiga pretensão de levar até à margem esquerda do rio Mossoró, onde abundavam as salinas, os limites do termo daquela Vila, por lhe parecer que até lá iam suas divisas territoriais. Em 1793, a rainha D. Maria I garantiu essa expansão com uma Carta Régia. Por meio do documento, as autoridades cearenses delimitaram seu novo território em 1801. Como a carta não indicava a altura do rio que serviria de fronteira, foi necessária nova demarcação uma década depois. Nessa segunda oportunidade, o governo usou como ponto de referência um marco plantado à margem esquerda do rio Mossoró, chamado Pau Infincado. Os potiguares protestaram, mas a Coroa não se posicionou. E por mais de oitenta anos o terreno foi explorado pelas duas capitanias sob relativa paz. Mas em 1891, quando a primeira constituição republicana foi aprovada, o conflito veio à tona. Fortemente inspirada na Constituição dos Estados Unidos, de 1787, a nova Carta brasileira deu autonomia aos estados para criarem e ferirem as riquezas do sal, o Ceará passou a denunciar a invasão norte-rio-grandense. O estado resolveu, então, dar entrada em um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) em 1894. A Justiça levou quatro anos para se posicionar, quando afirmou não se tratar de um conflito de jurisdição, mas de território. Disse ainda que, devido a essa mudança, o caso não seria da competência do Poder Judiciário, mas do Legislativo. Diante da resposta do STF, o governo do Ceará recorreu não ao Congresso Nacional, mas à sua Assembleia Estadual. Nela, um projeto de lei foi apresentado e aprovado no prazo recorde de sete dias. A lei estadual nº 639, de 19 de julho de 1901, elevava a localidade de Grossos a Vila. Por este motivo, o conflito ficou conhecido como “Caso Grossos” ou “Questão de Grossos”. Era justamente nesse local que ficavam duas escolas cujas despesas eram pagas pelo Rio Grande do Norte. Com essa carta na manga, o governo potiguar contestou a atitude do estado vizinho. O impasse estava formado. Mas como não havia lei específica para tratar dos conflitos territoriais no Brasil, os dois estados tentaram chegar a uma resolução por meio do direito internacional. Em março de 1902, acordaram que o caso seria resolvido por um Tribunal Arbitral, geralmente usado quando dois países litigantes davam o poder de julgar a um terceiro. Como se tratava de dois estados da federação, o conflito seria resolvido por dois árbitros. O tribunal foi formado por Antônio Coelho Rodrigues (1846-1912) e o engenheiro Matheus Nogueira Brandão, paulista. Por não chegarem a um acordo, foi nomeado um desempatador, chamado Lafayetty Rodrigues (1834-1917). A decisão final foi favorável ao Ceará. Mas o governo do Rio Grande do Norte bateu o pé: alegou vários erros no laudo e anunciou que não cumpriria o acordo. As autoridades cearenses não fizeram por menos. Resolveram levar o conflito à Câmara Federal, onde apresentaram o projeto de lei que a Assembleia Legislativa do estado havia aprovado em 1901. O texto, porém, trazia algumas mudanças, e a principal delas foi a de que o território contestado deixava de ser apenas da barra do rio Mossoró ao Pau Infincado. Agora, a reivindicação era por praticamente toda a região de limites entre os dois estados. Pelos trâmites oficiais, o projeto deveria passar pela Comissão de Constituição, Legislação e Justiça antes de ser votado. Mas o Ceará não queria esperar. Para garantir o território, o governador Pedro Borges (1851-1922) resolveu tomar posse de Grossos: enviou cerca de 40 praças (policiais) ao local, que expulsaram os coletores de impostos potiguares. Uma enxurrada de críticas ao governo cearense tomou os jornais do Rio Grande do Norte com artigos, charges e reportagens censurando a atitude do estado vizinho. Não demorou para que as forças militares também fossem acionadas por ali. Para tentar barrar a posse cearense, o governador potiguar enviou a Grossos 150 praças em 31 de janeiro de 1903. Faltou pouco para que explodisse um conflito armado entre os dois comandos. Foi quando o presidente Rodrigues Alves (1848-1919) interveio, pedindo aos governadores que esperassem o parecer da Comissão de Constituição, Legislação e Justiça. A decisão veio na sequência: o Congresso Nacional posicionou-se desfavorável ao projeto de lei cearense, alegando que aquele não era um conflito de território, mas de jurisdição, o que devolveria a responsabilidade da questão ao STF, que já havia argumentado exatamente o contrário do Legislativo. O advogado cearense Frederico Borges, irmão do governador cearense Pedro Borges, retomou o processo no mesmo ano. O Rio Grande do Norte escolheu como advogado o jurista Rui Barbosa, que deu entrada com a defesa, chamada de Razões Finais. Nela, ele tenta justificar que o estado potiguar teria tido a posse do território durante todo o processo de formação das duas capitanias. O mais interessante na análise de Rui Barbosa é a maneira com que argumenta e a prova principal que sustenta para vencer. Ele usa um documento oferecido pelo próprio advogado cearense, que acusava o Rio Grande do Norte de ser invasor há tanto tempo que nem tinha como precisar. Para Rui, essa informação era a prova de que os potiguares já possuíam aquele território. A justificativa era baseada em um princípio jurídico chamado de uti possidetis, segundo o qual a posse de um território é de quem de fato o ocupa. E foi a partir dele que o Judiciário se posicionou contrário ao Ceará. No entanto, o parecer não veio de uma hora para outra. Foram necessários três julgamentos e muitos anos para que a decisão se concretizasse nos chamados acórdãos, em 1908, 1915 e 1920 – este último resolvido com a pressão exercida pelo então presidente Epitácio Pessoa. À época, aquela disputa territorial tornou-se apenas mais uma dentre tantos outros conflitos que estavam surgindo entre os estados brasileiros. Por conta disso, em julho de 1920, foi organizada uma Conferência de Limites Interestaduais. Reunidos no Rio de Janeiro por duas semanas, políticos e juristas debateram as possibilidades de acordo entre os conflitantes. O encontro era uma tentativa de encorajar os estados a resolverem suas questões de limites até a data da comemoração do Centenário da Independência. Na data, deveria ser mostrado um país unido, não em pedaços. Deveria se mostrar o seu todo, não sua fragmentação. O processo final envolvendo cearenses e potiguares chegou ao inimaginável e impressionante número de 7 mil páginas. Ao Rio Grande do Norte só coube buscar a demarcação, agora a seu favor. Seu mapa atual corresponde exatamente ao que era pretendido na época. Já o Ceará não se deu por vencido. No mesmo ano da decisão, resolveu jogar seus tentáculos para outros lados, e começou a disputar uma faixa de terra com o Piauí. Rui Barbosa, apesar de ter entrado no processo somente em 1903 e de ter se afastado antes da conclusão do processo, sua participação foi notória nos documentos históricos. Na maioria dos trabalhos, é o único comentário feito na historiografia potiguar sobre o conflito. Esses historiadores põem na conta do jurista a vitória do Rio Grande do Norte. Essa defesa, no entanto, custou caro para o Rio Grande do Norte. O contrato assinado na época foi fixado em 40 contos de réis. O valor era tão alto que teve que ser dividido em oito vezes. E como o processo se estendeu por um longo período, Barbosa ainda foi beneficiado com um salário mensal.


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