Por Geraldo Maia
Para se
entender essa questão, é necessário lembrar que desde o início da sua
colonização, a região da ribeira do Mossoró se prestou muito bem para a criação
do gado, principalmente pela presença de lambedores salinos. O gado que era
produzido na região, era exportado principalmente para a capitania de Pernambuco,
principalmente para os engenhos de cana de açúcar, que usavam não só a carne,
mas as juntas de boi para mover as moendas. Mas pela longa viagem, a boiada que
saía de Mossoró chegava a seu destino bastante abatida, o que acabou se
tornando inviável comercialmente. Aproveitando a abundância de sal que existia
na região, resolveram charquear a carne, como já era feito no Ceará, pois dessa
forma a carne podia sem enviada para grandes distâncias sem prejuízo da
qualidade. Assim foram instaladas oficinas de charqueamento em Mossoró e Açu. A
medida causou, no entanto, descontentamento tanto da parte do Ceará quanto de
Pernambuco. Os cearenses não gostaram da concorrência das charqueadas
mossoroenses e os pernambucanos reclamavam da falta de boi para tração dos engenhos.
Medidas foram tomadas para acabar com as charqueadas do Rio Grande do Norte,
inclusive fechando os portos de Açu e de Mossoró. As carnes secas só poderiam
ser fabricadas no Ceará, conforme determinações reais. Mas para charquear a
carne, o Ceará precisava do sal que era produzido no Rio Grande do Norte. Ainda
em meados do século XVIII, as autoridades da Vila do Aracati, hoje município
cearense, solicitaram à Coroa portuguesa o aumento de seu território. A
intenção era ficar com parte das salinas do rio Mossoró. O lucro das
charqueadas estava ameaçado pelo estanco do sal, monopólio da comercialização
concedida pela Coroa a particulares. Apenas as capitanias de São Tomé, Rio
Grande e Pernambuco eram produtoras. Elas podiam consumir o sal extraído em
seus terrenos, mas não comercializar o produto com as capitanias vizinhas. Isto
fazia com que o Ceará consumisse o sal português com seus altos impostos. A
única maneira de diminuir o prejuízo era aumentar o seu território até as
salinas. O Ceará, por intermédio da Câmara da Vila de Aracati, sugeriu ao
governo de Lisboa o deferimento de sua antiga pretensão de levar até à margem
esquerda do rio Mossoró, onde abundavam as salinas, os limites do termo daquela
Vila, por lhe parecer que até lá iam suas divisas territoriais. Em 1793, a
rainha D. Maria I garantiu essa expansão com uma Carta Régia. Por meio do
documento, as autoridades cearenses delimitaram seu novo território em 1801.
Como a carta não indicava a altura do rio que serviria de fronteira, foi necessária
nova demarcação uma década depois. Nessa segunda oportunidade, o governo usou
como ponto de referência um marco plantado à margem esquerda do rio Mossoró,
chamado Pau Infincado. Os potiguares protestaram, mas a Coroa não se
posicionou. E por mais de oitenta anos o terreno foi explorado pelas duas
capitanias sob relativa paz. Mas em 1891, quando a primeira constituição
republicana foi aprovada, o conflito veio à tona. Fortemente inspirada na
Constituição dos Estados Unidos, de 1787, a nova Carta brasileira deu autonomia
aos estados para criarem e ferirem as riquezas do sal, o Ceará passou a
denunciar a invasão norte-rio-grandense. O estado resolveu, então, dar entrada
em um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) em 1894. A Justiça levou
quatro anos para se posicionar, quando afirmou não se tratar de um conflito de
jurisdição, mas de território. Disse ainda que, devido a essa mudança, o caso
não seria da competência do Poder Judiciário, mas do Legislativo. Diante da
resposta do STF, o governo do Ceará recorreu não ao Congresso Nacional, mas à
sua Assembleia Estadual. Nela, um projeto de lei foi apresentado e aprovado no
prazo recorde de sete dias. A lei estadual nº 639, de 19 de julho de 1901,
elevava a localidade de Grossos a Vila. Por este motivo, o conflito ficou
conhecido como “Caso Grossos” ou “Questão de Grossos”. Era justamente nesse
local que ficavam duas escolas cujas despesas eram pagas pelo Rio Grande do
Norte. Com essa carta na manga, o governo potiguar contestou a atitude do
estado vizinho. O impasse estava formado. Mas como não havia lei específica
para tratar dos conflitos territoriais no Brasil, os dois estados tentaram
chegar a uma resolução por meio do direito internacional. Em março de 1902,
acordaram que o caso seria resolvido por um Tribunal Arbitral, geralmente usado
quando dois países litigantes davam o poder de julgar a um terceiro. Como se
tratava de dois estados da federação, o conflito seria resolvido por dois
árbitros. O tribunal foi formado por Antônio Coelho Rodrigues (1846-1912) e o
engenheiro Matheus Nogueira Brandão, paulista. Por não chegarem a um acordo,
foi nomeado um desempatador, chamado Lafayetty Rodrigues (1834-1917). A decisão
final foi favorável ao Ceará. Mas o governo do Rio Grande do Norte bateu o pé:
alegou vários erros no laudo e anunciou que não cumpriria o acordo. As
autoridades cearenses não fizeram por menos. Resolveram levar o conflito à
Câmara Federal, onde apresentaram o projeto de lei que a Assembleia Legislativa
do estado havia aprovado em 1901. O texto, porém, trazia algumas mudanças, e a
principal delas foi a de que o território contestado deixava de ser apenas da
barra do rio Mossoró ao Pau Infincado. Agora, a reivindicação era por
praticamente toda a região de limites entre os dois estados. Pelos trâmites
oficiais, o projeto deveria passar pela Comissão de Constituição, Legislação e
Justiça antes de ser votado. Mas o Ceará não queria esperar. Para garantir o
território, o governador Pedro Borges (1851-1922) resolveu tomar posse de
Grossos: enviou cerca de 40 praças (policiais) ao local, que expulsaram os
coletores de impostos potiguares. Uma enxurrada de críticas ao governo cearense
tomou os jornais do Rio Grande do Norte com artigos, charges e reportagens
censurando a atitude do estado vizinho. Não demorou para que as forças
militares também fossem acionadas por ali. Para tentar barrar a posse cearense,
o governador potiguar enviou a Grossos 150 praças em 31 de janeiro de 1903.
Faltou pouco para que explodisse um conflito armado entre os dois comandos. Foi
quando o presidente Rodrigues Alves (1848-1919) interveio, pedindo aos
governadores que esperassem o parecer da Comissão de Constituição, Legislação e
Justiça. A decisão veio na sequência: o Congresso Nacional posicionou-se
desfavorável ao projeto de lei cearense, alegando que aquele não era um
conflito de território, mas de jurisdição, o que devolveria a responsabilidade
da questão ao STF, que já havia argumentado exatamente o contrário do
Legislativo. O advogado cearense Frederico Borges, irmão do governador cearense
Pedro Borges, retomou o processo no mesmo ano. O Rio Grande do Norte escolheu
como advogado o jurista Rui Barbosa, que deu entrada com a defesa, chamada de
Razões Finais. Nela, ele tenta justificar que o estado potiguar teria tido a
posse do território durante todo o processo de formação das duas capitanias. O
mais interessante na análise de Rui Barbosa é a maneira com que argumenta e a
prova principal que sustenta para vencer. Ele usa um documento oferecido pelo
próprio advogado cearense, que acusava o Rio Grande do Norte de ser invasor há
tanto tempo que nem tinha como precisar. Para Rui, essa informação era a prova
de que os potiguares já possuíam aquele território. A justificativa era baseada
em um princípio jurídico chamado de uti possidetis, segundo o qual a posse de
um território é de quem de fato o ocupa. E foi a partir dele que o Judiciário
se posicionou contrário ao Ceará. No entanto, o parecer não veio de uma hora
para outra. Foram necessários três julgamentos e muitos anos para que a decisão
se concretizasse nos chamados acórdãos, em 1908, 1915 e 1920 – este último
resolvido com a pressão exercida pelo então presidente Epitácio Pessoa. À
época, aquela disputa territorial tornou-se apenas mais uma dentre tantos
outros conflitos que estavam surgindo entre os estados brasileiros. Por conta
disso, em julho de 1920, foi organizada uma Conferência de Limites
Interestaduais. Reunidos no Rio de Janeiro por duas semanas, políticos e
juristas debateram as possibilidades de acordo entre os conflitantes. O
encontro era uma tentativa de encorajar os estados a resolverem suas questões
de limites até a data da comemoração do Centenário da Independência. Na data,
deveria ser mostrado um país unido, não em pedaços. Deveria se mostrar o seu
todo, não sua fragmentação. O processo final envolvendo cearenses e potiguares
chegou ao inimaginável e impressionante número de 7 mil páginas. Ao Rio Grande
do Norte só coube buscar a demarcação, agora a seu favor. Seu mapa atual
corresponde exatamente ao que era pretendido na época. Já o Ceará não se deu
por vencido. No mesmo ano da decisão, resolveu jogar seus tentáculos para
outros lados, e começou a disputar uma faixa de terra com o Piauí. Rui Barbosa,
apesar de ter entrado no processo somente em 1903 e de ter se afastado antes da
conclusão do processo, sua participação foi notória nos documentos históricos.
Na maioria dos trabalhos, é o único comentário feito na historiografia potiguar
sobre o conflito. Esses historiadores põem na conta do jurista a vitória do Rio
Grande do Norte. Essa defesa, no entanto, custou caro para o Rio Grande do
Norte. O contrato assinado na época foi fixado em 40 contos de réis. O valor
era tão alto que teve que ser dividido em oito vezes. E como o processo se
estendeu por um longo período, Barbosa ainda foi beneficiado com um salário
mensal.
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