Por: Rostand Medeiros
UM
DESCONHECIDO EPISÓDIO DA GUERRA FRIA EM ÁGUAS POTIGUARES
Ouve um tempo
em que Natal olhava para o céu e via interessantes rastros espiralados de
fumaça branca, que às vezes marcava grandes extensões do firmamento. Era a
época em que Natal ficou conhecida como “Capital Espacial do Brasil”, termo
irradiado entusiasticamente pelas rádios locais para mostrar a importância do
Centro de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno, na época um local
único no país.
Foto atual do
complexo da Barreira do Inferno
Era a década
de setenta do século passado, período em que nosso país vivia um período
difícil, fechado e o mundo estava em plena Guerra Fria, se mantendo em
permanente estado de tensão, sempre com o medo presente de uma hecatombe
nuclear entre os americanos e os russos soviéticos. Este conflito ideológico
era distante de nossa realidade e não dávamos a mínima atenção.
Mas houve um
dia os soviéticos decidiram espionar a nossa Barreira do Inferno.
Natal Soltando
Foguetão
A história da
implantação do Centro de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno
confunde-se com a história do inicio das atividades espaciais no Brasil.
A ideia de o
Brasil galgar o espaço exterior tem início com o próprio desenvolvimento dos
processos tecnológicos de lançamento de foguetes pelos países vencedores da
Segunda Guerra Mundial. A ideia de ficar para trás neste novo desenvolvimento
tecnológico não passava na cabeça de algumas pessoas inteligentes que havia em
nosso país naquela época. Logo com a criação de instituições como o Instituto
Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 1950 e o surgimento do Centro Técnico de
Aeronáutica, hoje o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), como órgão científico e
técnico do Ministério da Aeronáutica apontava para a necessidade do
desenvolvimento de um projeto de programa espacial brasileiro.
Mas como bem
sabemos, no governo brasileiro aqueles que têm ideias interessantes, têm
proporcionalmente grandes dificuldades no desenvolvimento de seus projetos por
conviverem com medíocres e carreiristas de plantão, que não sabem perceber no
presente as necessidades do futuro.
Mas como
também sempre ocorre no nosso país, só após termos visto que estrangeiros dão
importância a uma determinada coisa, é que iniciamos as mesmas atividades.
Muitos
artefatos disparados em cabo Canaveral, eram monitorados pela estação de
Fernando de Noronha – Fonte – NASA
Em 1956 os
Estados Unidos chamaram o governo brasileiro para participar como parceiro na
criação de uma estação de rastreio de veículos espaciais no Arquipélago
de Fernando de Noronha. Ali deveriam acompanhar a trajetória dos artefatos
lançados em Cabo Canaveral, na Flórida.
Vendo que não
poderia deixar de participar do desenvolvimento aeroespacial que acontecia no
mundo, o governo brasileiro decidiu construir uma base de lançamento de
foguetes. A princípio foram escolhidos três locais no Nordeste para a sua
instalação: Fernando de Noronha, Aracati (Ceará) e a região próxima a praia de
Ponta Negra. Após uma análise, decidiu-se que Ponta Negra era o local ideal.
Em 05 de
outubro de 1964 teve início a construção das primeiras edificações do centro de
lançamento. Recordo de uma antiga reportagem de um jornal local, que até mesmo
grupos de presidiários de bom comportamento foram utilizados na construção da
estrada de acesso a base. Oficialmente a base foi primeiramente denominada
Campo de Lançamento de Foguetes de Ponta Negra, mas depois receberia a
denominação de Centro de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno.
Esta era uma
área pouco frequentada por pescadores, pela existência de uma grande falésia de
arenito, muitas pedras e forte correnteza que não ajudava em nada a navegação
das pequenas jangadas dos pescadores da vila de Ponta Negra.
Um recente
lançamento na Barreira do Inferno
Em 15 de
dezembro de 1965 ocorreu o primeiro lançamento de um foguete na Barreira do
Inferno. Foi um foguete americano de dois estágios NIKE-APACHE, fruto de uma
nova cooperação entre o Brasil e os Estados Unidos, com a participação de
técnicos da NASA.
Logo um
foguetório de fazer inveja em festa de São João era visto nos céus potiguares.
Chegou um momento que de tão comuns, os rastros dos foguetes já nem chamavam
mais a atenção das pessoas na cidade. De toda maneira o espetáculo enchia de
orgulho o povo de nossa terra, sendo referência no Brasil. Até o grande
sanfoneiro Luiz Gonzaga colocou na sua música “Nordeste prá frente“ o seguinte
refão;
“Caruaru tem
sua universidade
Campina Grande
tem até televisão
Jaboatão
fabrica jipe à vontade
lá de Natal já
tá subindo foguetão…”
Participação
Estrangeira
Por sua
localização no Nordeste do Brasil, próximo a linha do Equador e suas
instalações, a Barreira do Inferno começou a chamar a atenção dos centros de
desenvolvimento espacial espalhados pelo mundo afora. Vários projetos
internacionais foram firmados entre o nosso país, estados e centro de pesquisa
estrangeira. A NASA e o Max Plank Institute, da então República Federal da
Alemanha, se tornaram utilizadores habituais das instalações da Barreira do
Inferno e seus cientistas eram clientes comuns do novo hotel dos Reis Magos, na
praia do Meio.
Foguetes tipo
Nike-Ajax, Nike-Cajun, Nike-Iroquois, Javelin, Aerobee e outros eram aqui
lançados. De dezembro de 1965 a março de 1972 a Barreira do Inferno já havia
disparado um total de 381 foguetes. O lançamento de número 382 estava previsto
para ocorrer no dia 7 de março de 1972, onde um modelo Black Brant 5C,
fabricado pela empresa canadense Bristol Aerospace e vendido para os alemães
desenvolverem seus projetos de pesquisa espacial, subiria a partir da Barreira
do Inferno.
Esta operação
era parte do Projeto Aeros, onde o custo de 1 milhão de dólares do disparo era
totalmente financiado pelo estado germânico e trazia algumas novidades em
relação aos lançamentos anteriores. A sua carga útil de componentes
eletrônicos de medição, pesando 98 quilos, seria recuperada a cerca de 145
milhas náuticas (268 km) de distância da base, o Black Brant 5C atingiria a
altitude máxima de 230 km e após o fim de combustível cairia livremente até
4.500 metros de altitude, quando seria acionado seus paraquedas e a carga
cairia tranquilamente no oceano. Essa carga seria recuperada com o trabalho
conjunto de uma corveta do Grupamento Naval do Nordeste da Marinha do Brasil e
dois helicópteros SAR da FAB – Força Aérea Brasileira. Até então eram normalmente
eram disparados foguetes cuja área de recuperação de sua carga útil atingia em
média de 40 milhas náuticas (74 km) e metade da altitude. Diante da situação a
FAB e a Marinha criaram uma área de exclusão ao redor da Barreira do Inferno de
60 milhas náuticas (111 km), onde todo o tráfego aéreo e marítimo foi
expressamente proibido por razões de segurança.
Durante a
operação a corveta da Marinha ficaria permanentemente em alto mar e caberia
também a sua tripulação a missão de informar a Barreira do Inferno, cinco horas
antes do lançamento, as condições do tempo, velocidade do vento,
visibilidade e cobertura de nuvens. Ainda em relação a meteorologia o
monitoramento também era realizado pelo então Centro Meteorológico do Instituto
de Atividades Espaciais, com sede em São José dos Campos, São Paulo, que
utilizava informações vindas do satélite ESSA-8. Todo este cuidado era
importante, pois naquele início de março de 1972 estava ocorrendo algumas
chuvas na costa potiguar.
O evento era
coberto de extrema segurança e contava com a presença até do então Ministro da
Aeronáutica, o brigadeiro Araripe Macedo, toda a cúpula da FAB, do setor
técnico aeroespacial brasileiro e do pessoal diplomático e técnico alemão.
P-15 da FAB
Para manter a
cobertura área segura a FAB disponibilizou duas aeronaves de patrulha
Lockheed P-15 Neptune, pertencentes ao Primeiro Esquadrão do Sétimo Grupo
de Aviação (1º/7º GAv), o conhecido Esquadrão Orungan, sediado em Salvador, na
Bahia.
E foram os
membros deste esquadrão que localizaram em alto mar, às dez horas da manhã do
dia 1 de março, um penetra no foguetório teuto-brasileiro.
O Intruso
Vermelho
As aeronaves
de patrulha da FAB eram equipadas com potentes radares de busca, podiam voar
horas sobre o mar e segundo os jornais da época teriam detectado um forte sinal
que aparentava ser de um navio de grande porte, agindo de maneira suspeita em
águas territoriais brasileiras. Prontamente eles foram investigar.
Navio
Cosmonauta Iuri Gagarin – Fonte – Wikipédia
Os tripulantes
se depararam com um grande navio pintado em cor clara, equipado com enormes
antenas parabólicas, navegando lentamente a cerca de 144 milhas náuticas (266
km) da costa de Natal. Os dados mostraram que o tal navio estava 56 milhas
náuticas (103 km) dentro de águas territoriais brasileiras, em clara violação
segundo as leis brasileiras.
Vale frisar
que nesta época a União Soviética não reconhecia o mar territorial brasileiro
como tendo 200 milhas náuticas. O decreto ampliando a nossa faixa marítima
havia sido instituído apenas em 1970 e além dos soviéticos os
arquivos do Itamaraty registram notas de protesto, ou de não reconhecimento, ou
de reservas quanto ao ato unilateral de ampliação do mar territorial, vindos da
Bélgica, Estados Unidos, Finlândia, França, Grécia, Japão, Noruega, Reino
Unido, República Federal da Alemanha e Suécia.
Mas para os
aviadores do P-15 Neptune, os soviéticos e seu grande navio estavam
sim em nossas águas territoriais e, ou caiam fora, ou poderiam sofrer alguma
consequência. E aquele não era um naviozinho qualquer, era o grande e
recém-lançado navio soviético de monitoramento espacial Cosmonauta Iuri
Gagarin.
Um verdadeiro
monstro com 230 metros de comprimento, autonomia de 24.000 milhas náuticas
(44.448 km) e uma tripulação de 180 pessoas, onde entre estes haviam os mais
especializados técnicos de monitoramento e rastreamento eletrônico da extinta
União Soviética. Em operação desde dezembro de 1971, a silhueta do navio
Cosmonauta Iuri Gagarin se caracterizava pela existência de quatro grandes antenas
parabólicas e elas serviam para monitorar tudo que fosse interessante e
relativo a área espacial produzido pelos países ocidentais.
O Iuri Gagarin
e sua inconfudível silhueta – Fonte – Wikipédia
Apesar de
vivermos o período de extrema censura jornalística durante a ditadura militar
brasileira, o interessante neste caso foi que os militares não negaram aos
jornais praticamente nenhuma informação sobre a presença deste “intruso
vermelho” em nossas águas. Desejavam mostrar que as nossas Forças Armadas
estavam atentas a movimentação daquele barco carregado de alta tecnologia russa
e em clara missão de espionagem tecnológica.
E não podemos
negar que o pessoal do Esquadrão Orungan estava realizando corretamente seu
trabalho. Segundo o então comandante da operação de lançamento do foguete Black
Brant 5C, o coronel aviador Paulo Henrique Correia do Amarante, não havia
dúvidas que o navio Cosmonauta Iuri Gagarin estava no mar territorial
brasileiro para monitorar e rastrear o lançamento do foguete adquirido pelos alemães.
Ele afirmou
que após a localização visual do navio, ocorreu uma primeira passagem para
fotografias e depois os P-15 Neptune da FAB realizaram voos rasantes “raspando
as antenas e o mastro do navio soviético”. A tripulação do Iuri Gagarin
prontamente acelerou as máquinas e deslocou a nave para fora de nossas águas
territoriais, em uma direção que o conduzia a região do Arquipélago de Fernando
de Noronha. O coronel Paulo Henrique chegou mesmo a apresentar fotografias do
navio espião à imprensa.
Foi divulgado
que no dia 6 de março os P-15 Neptune retornaram a missão de buscas ao navio
Cosmonauta Iuri Gagarin, em uma operação que durou mais de cinco horas,
alcançando uma área de 900 milhas náuticas de patrulha, incluindo Fernando de
Noronha. Foi utilizado constante busca por radar, foram levados cinegrafistas
para registar a presença da nave, mas o grande navio não voltou a ser
localizado.
Desenho do
P-15 da FAB – Fonte – wp.scn.ru
Para os
militares brasileiros o lançamento do foguete Black Brant 5C e a parceria
teuto-brasileira não tinha nada de secreto. Tanto que as atividades na Barreira
do Inferno eram amplamente divulgadas, até como forma de mostrar que o governo
militar era atuante e tecnologicamente moderno. Deduziu-se que a presença
do navio Cosmonauta Iuri Gagarin, violando as novas águas territoriais
brasileiros e arriscando um possível problema diplomático, era um claro aviso
aos alemães que os soviéticos estavam plenamente atentos as suas atividades
aeroespaciais, ocorressem elas onde ocorressem.
Esta situação
de bisbilhotagem eletrônica entre a extinta União Soviética e os países
ocidentais eram ações mais do que corriqueiras durante a chamada Guerra Fria.
Eles se xeretavam mutuamente na tentativa de descobrir os avanços tecnológicos
dos inimigos e muitas vezes estas ações serviam para mostrar ao adversário que
o outro lado estava atento e alerta.
Nós
brasileiros é que não estávamos acostumados com este tipo de coisa.
E a Visita das
Baleias
Serguei
Mikhailov, o então embaixador soviético no Brasil na época negou qualquer
declaração por parte daquela representação diplomática e não sei se o Itamaraty
chegou a emitir alguma nota de desagravo. desconheço se o caso teve maiores
desdobramentos diplomático.
Apesar de
alguns atrasos devido à chuva, exatamente as 7h32m53s da manhã do dia 8 de
março de 1972 o foguete Black Brant 5C foi lançado da Barreira do Inferno em
direção ao sol.
O artefato
alcançou 230 km de altitude e precisamente 10 minutos e 15 segundos após o
lançamento a sua carga útil de equipamentos eletrônicos de medição tocou o
Oceano Atlântico a 15 milhas náuticas (28 km) da corveta da Marinha. Já os P-15
Neptune da FAB localizaram visualmente a cápsula no mar e apoiaram a chegada do
navio da marinha brasileira.
Os militares
da FAB não avistaram o navio Cosmonauta Iuri Gagarin, mas informaram que foram
visualizadas duas graciosas e grandes baleias próximas ao artefato
aeroespacial. Consta que os cetáceos se mostraram completamente indiferentes
com a presença humana no seu território, com as tolas diferenças ideológicas
dos homens e com seus brinquedinhos tecnológicos.
Fontes –
Reportagens publicadas no periódico carioca Jornal do Brasil, edições de 7,8 e
9 de março de 1972, respectivamente nas páginas página 18, 7 e 4.
Todos os
direitos reservados
É permitida a
reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, desde que citada a fonte e o autor.
História do Rio
Grande do Norte 1º/7º
GAv, Aerobee, Black Brant 5C, Cabo Canaveral, Capital
espacial do Brasil, Centro
de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno,Centro
Técnico Aeroespacial (CTA), Estados Unidos, FAB, Fernando de
Noronha, Flórida, Guerra Fria,Instituto
Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Javelin, Lockheed
P-15 Neptune, Max Plank
Institute, NASA,Nike-Ajax, Nike-Cajun, Nike-Iroquois, Orungan, Ponta Negra, Russos, Soviéticos, União Soviética
Extraído do blog:
Tok de História
http://tokdehistoria.wordpress.com/
Diga-se de passagem que os "presidiários" usados na construção do Centro de Lançamento não foram os presidiários comuns, como estamos acostumados a saber; mas sim, aqueles soldados que cumpriam penas por faltas cometidas dentro dos próprios quartéis locais de Natal. Fonte: Engº Mário Sérgio, pioneiro do CLBI, em entrevista a equipe do "Projeto de Resgaste Histórico do CLBI".
ResponderExcluir