Por: (Ranulfo Prata)
Teria sido
Lampião, realmente, um homem violento, cruel, frio, capaz de cometer os mais
horrendos homicídios? Sim. A descrição de alguns dos seus crimes feita por
Ranulfo Prata, não deixa dúvida alguma de que, antes de ser o Robin Hood
descrito por alguns de seus historiadores, o cangaceiro-chefe, foi acima de
tudo desapiedado para com suas vítimas.
"Vila
Queimadas é uma humílima estação da estrada de ferro que liga a capital baiana
a Juazeiro, aquela mesma que nos tempos da campanha de Canudos fez-se conhecida
por ser ponto de desembarque das tropas expedicionárias.
Euclydes da
Cunha assim a ela se refere:
"O
casario pobre, desajeitadamente arrumado pelos lados da praça irregular,
fundamente arada pelos enxurros, um claro no matagal bravio que o rodeia e,
principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, salteadamente
pontilhadas de morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho, completando-lhe o
aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas"
Ainda hoje é
assim.
Como todos os
povoados da região parece sempre em "franco descambar para tapera em
ruínas", mas não morre nunca, perdura num estado miserável de cachexia,
animado de eterno sopro de vida.
Lampião uma
manhã fez-lhe uma surpresa de bater-lhe as portas. Tomou de assalto o quartel e
nele prendeu todo o destacamento, composto de sete soldados e um sargento.
Deixando-o sob a guarda dos cabras, que assim transformaram os pobres
policiais, de carcereiros que eram, em encarcerados, foi a uma pensão e pediu
que lhe servissem lauto almoço, fazendo questão de que todos os hóspedes,
viajantes e pessoas outras, sentassem também à mesa para comer em sua
companhia.
Houve quase um
banquete. O dono da casa apressou-se em servir o hóspede, matando galinhas, e
preparando pratos especiais, atulhando a mesa de iguarias e bebidas várias.
O senhor dos
sertões abancou-se à cabeceira e a refeição correu sem novidade, o anfitrião a
sorrir amável para todos, principalmente aos viajantes que riam um tanto
forçados, deglutindo mal, com espasmos no esôfago.
Ao findar,
pagou largamente e encaminhou-se para o quartel onde os seus prisioneiros, lívidos
e com o coração a bater forte, aguardavam a sentença, que não demorou muito.
Paga um deles
e leva-o para o oitão da cadeia. Ordena que se ajoelhe. O homem dobra as pernas
que mal sustém o corpo e finca os joelhos no chão. Tem um olhar intraduzível de
pavor. E friamente, serenamente, o matador bárbaro saca do punhal de 78
centímetros de lâmina e crava, num golpe certeiro e veloz, na região preferida
– a fossa supra-clavicular. A arma, agudíssima, vara facilemnte o mole dos
tecidos, como um palito à manteiga.
A experiência
ensinou-lhe ser ali ótima região, sem obstáculos ósseos que lhe resvalem o
punhal. Ao introduzi-lo oblíqua à direita ou esquerda, conforme o lado ferido,
transfiando, assim, o mediasno. O homem, sangrado como uma rez, dá um salto,
lança nos ares um urro medonho e cai de borco, já cadáver.
Ele volta à
prisão, retira o segundo condenado e repete a cena com a mesma indiferença e
frieza. O mesmo golpe certeiro, o mesmo salto, o mesmo urro medonho que põe nos
nervos mais equilibrados um tremor de angústia mal definida.
Arrasta para
fora o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto e o sétimo. Quando chega a vez do
sargento Evaristo muitas pessoas do lugar intercedem, pedem, imploram em favor
do desgraçado. Que, o poupe, ao menos, que o poupe, animam-se a dizer alguns.
Já correu muito sangue, deixe a vida ao pobre sargento que tem família numerosa
e é homem bom, e querido. Lampião fita-o, nota-lhe os beiços alvacentos a
tremerem, a brancura das feições transtornadas, as pernas mal firmes, e diz numa
zombaria macabra:
Não sei pruque
nunca vi homem corado na minha frente!
E consente-lhe
a esmola da vida, num gesto desdenhoso de vencedor terrível.
Manda
enfilerar os cadáveres.
Quando eu sai
que enterre, ordena.
E virando as
costas vai bebericar numa venda próxima.
Além desta
mortandade ultraja o juiz e exige da população miserável mais de uma dezena de
contos.
Trabalhavam
alguns homens na estrada de rodagem, no sítio Carro Quebrado, entre Chorrochó e
Barro Vermelho, sob a direção do capataz José Grande, quando foram
surpreendidos pelos bandoleiros. Lampião desce da sua montada e caminha para
eles de cara fechada, sobrecenho carregado e diz aos trabalhadores
estarrecidos:
- Já avisei a
todos Qui não quero este negóço de estrada, Qui só serve p’ra passar macaco
atrás de mim, vocês não ligaro o que eu apreveni e por isto vão morrê.
Estabeleceu-se
enorme confusão, durante a qual muitos fogem em louca corrida pelo mato.
Nove deles,
porém, são pegados, subjugados e juntamente com o capataz, que não conseguiu
escapulir, foram sangrados.
E a malta,
minutos depois, abalava num galope, deixando nove corpos ensangüentados a
esteirar a estrada deserta.
Aproxima-se a
caterva de Capim Grosso. Os espiões informam, porém, que a vila se acha
guarnecida. Lampião torce caminho, receoso e cheio de cautelas. Ladeia a
população e toca para adiante na sua caminhada perene.
Mas tem
"boa" estrela, o acaso entrega-lhe nas mãos uma presa valiosa.
Aprisiona nas
vizinhanças da vila o seu escrivão, parente do coronel João Borges, de Uauá.
Como usa também dos processos civilizados de americanos, exige cinco contos da
família da vítima em troca de sua liberdade. Vai o emissário à povoação e
estipula o negócio.
A mulher não
possui tão grande quantia. O seu marido é um simples escrivão de roça, mal
ganha para passar com a família numerosa.
Entra em
desespero. Quer salvar a vida do esposo seja a que preço for. Corre, numa
aflição de meter dó, à casa dos parentes, dos conhecidos, de toda a gente que
possa socorrer com uma esmola. Pede pelo amor de Deus que lhe dêem, que lhe
emprestem qualquer coisa. É uma vida a ser poupada com ele, a vida preciosa de
seu marido.
Diante daquela
angústia imensa, toda a vila se comove e faz-se uma coleta. Povoação
paupérrima, para somar cinco contos foi preciso que quase todos concorressem
com um auxílio. E a quantia, afinal, após penoso angariar, se completa. A
mulher pega do volume de cédulas, aperta-o entre os dedos trêmulos, e com o
coração repousado numa grande alegria, entrega ao emissário.
- Pelo amor de
N. Senhora, diga ao capitão que o solte logo, implora, numa ânsia, desejosa de
libertar-se sem demora daquele pesadelo.
O povoado fica
à espera do refém.
Lampião recebe
o dinheiro, conta-o lentamente, molhando os dedos na língua, desaperta da
cintura "o papo de ema" que está túmido de notas graúdas, desdobra-o
e acondiciona, meticulosamente, mais aquele pacote.
Depois, lerdo,
caminha para a vítima e lhe diz:
- Pro mim você
tá livre, mas os meus meninos precisa ajustá conta com você.
Era a quebra
infame da palavra que garantira a vida do prisioneiro. Da sua
palavra, cujo cumprimento ele alardeava nos sertões, dizendo, arrogante, como
num juramento:
Palavra de
bandido!
E afasta-se,
indiferente.
Corisco
apossa-se do preso, apunhala-o e mutila o cadáver, abrindo-o em bandas, como
aos bodes nas feiras sertanejas.
* * *
Manuel Salina
e sua numerosa família, composta de cinco filhos e duas filhas, moravam no
sítio "Almacega", de sua propriedade, distante de Geremoabo quatro
léguas.
Vive
tranquilo, feliz, do plantio rudimentar da mandioca e de cereais, nos bons
invernos, e de limitada criação de gado, cabras e carneiros.
Certo dia, dia
fatídico que lhe havia de trazer aniquilamento total, fornece a uma volante que
lhe passa na porta, ligeiros informes sobre a direção tomada pela horda que ali
transitara dias antes. E foi só.
Graças ao seu
serviço de espionagem soube Lampião da denúncia, crime para ele sem apelação
nem recursos, e para o qual só há uma sentença: - a morte. Não esquece, não
perdoa. Cedo ou tarde, vinga-se. Mandou recados ao velho Salina, dizendo que
lhe havia de pagar.
O sitiante
sabendo com quem tratava, tendo certeza de que a promessa se realizaria,
mudou-se para Geremoabo, onde estaria bem guardado pelo fuzis que protegiam o
quartel-general da campanha. Abalou com toda a família, deixando ao abandono
completo casa, roça e criações.
E os dias
correram.
Antonio Salina
gastava as horas perambulando tristemente pelas ruas da "vila
secular", debruçando-se nos balcões das bodegas ou estirado na rede, em
sestas longas, numa ociosidade de afligir seus nervos de homem acostumado aos
trabalhos roceiros, braçais, de labuta constante, de sol a sol.
A inatividade
o adoentava.
E não era só a
inércia. Em casa, a farinha, base de alimentação, estava a faltar, os últimos
sacos se esvaziavam como se fossem despejados. A família era grande e de gente
sadia que comia bem. Que fazer? Comprá-la, pelo preço da seca que estava nas
feiras, não era possível, não tinha dinheiro para tanto. O remédio para a
aflição em que se achava era ir ao sítio colher umas mandiocas e fazer uma
farinhada. Mas, e a ameaça terrível que lhe pesava sobre a cabeça branca e já
cansada?
Consultou
amigos.
Não vá, foi o
conselho unânime.
Mas é só por
um dia e uma noite.
Explicava:
- Vou com os
meninos de madrugada, e quando o sol clarear já estaremos de mandioca
arrancada. Pelo meio-dia a raspação está no fim e o forno já quente. Ao esfriar
do sol as primeiras fornadas estão saindo, e antes do galo amiudar estaremos,
de novo, dentro de Geremoabo. Será serviço ligeiro, de quem tem pressa.
E assim foi. O
velho com toda a família partiu para Alma cega, para a farinhada trágica. E na
tarde de 13 de maio de 30, quando o serviço ia mais animado, todos entregues as
suas ocupações, Lampião risca o cavalo, repentinamente, no terreiro varrido. A
malta invade, num atropelo ruidoso, a casa de farinhar. É um momento angustioso
para os presentes. A primeira menção é de fuga, mas se acham tão rapidamente
envolvidos por todos os lados que o desejo logo se esvai, ficando todos como
paralisados nos lugares em que se encontram, as mulheres chorando, os homens de
olhos e braços caídos como se fossem manequins.
Pai e filhos
são logo presos.
Lampião com
ares solenes, relembra ao velho a perfídia de o Ter denunciado à tropa e diz
que agora irão pagar novos e velhos.
Lança mão de
um dos rapazes, sertanejo hercúleo, de mais de 20 anos, e cuidadosamente o
amarra a corda e relhos, ao pai, braço com braço, perna com perna, só de um
lado, tronando-os estranhamente xifopagos. Saca da cinta a pistola
"parabellum" e dispara à queima roupa, na nuca do moço, cuja massa
muscular toda se agita em extremeções violentas e emborca para a frente,
arrastando na queda o pai. É um cadáver que faz cair um vivo.
Lampião
curva-se sobre o bolo formado pelos dois corpos, e os separa a golpe de punhal,
cortando as amarras. Ergue o velho pela gola, num violento impulso e o põe de
pé, de novo. Pega no segundo filho e o ata do mesmo modo ao pai, braço com
braço, perna com perna. Outro tiro de "parabellum" na nuca e outro
baque de corpos embolados. Repete mais uma vez a cena com o terceiro filho, sem
omitir um detalhe, com os mesmos cuidados lentos. Escapa o quarto, o mais moço,
porque um dos bandidos ordenara-lhe subir no teto da casa e quebrar todas as
telhas para maior castigo dos culpados. Apanhando-se no telhado, o rapaz pula
do alto e desaparece na caatinga, indo parar em Geremoabo.
As mulheres
são poupadas. Mas não o são os companheiros de farinhada de Salina, abatidos,
um a um, como animais de corte: Boa Batata, Cirillo Batata, José Grande e
Antonio Batata.
Finda esta
parte voltam-se então para o velho, que até ali estivera a espectar o
morticínio. Cortam-lhe as duas orelhas, furam-lhe um olho, quebram-lhe os
dentes e castram-no.
Obrigam esta
figura miserável de homem a subir num animal encangalhado e partem. Lampião
exige que ele vá lhe mostrar a morada de um outro filho, distante três léguas.
O rijo sertanejo, que não se abate de todo, apesar das lesões graves, lá se vai
pela estrada como um símbolo vivo e doloroso e sangrento de toda aquela gente
que vive abandonada, naquele deserto de espinhos, de Deus e dos homens. Segue
aos cambaleios, com a cabeça branca toda vermelha de coágulos, o olho vazado a
porejar lágrimas de sangue, a boca cheia de espuma escarlate.
Adiante, muito
adiante, já noite avançada, chegam à casa do filho, vaqueiro do capitão Angelo,
de Geremoabo.
- Eu vou batê
na porta mas quem responde é você, seu véio safado, diz Lampião, apeando-se.
Bate com os
nós dos dedos na porta humilde. Alguém fala de dentro. O velho responde, cá de
fora. Reconhecendo a voz, o filho ergue-se ao abrir a porta recebe a
queima-roupa, um tiro no peito.
Faz-se
silêncio de novo. O suplício de Manoel Salina continua, num lento arrastar,
para o seu calvário, que não chega. Caminham...caminham... Só na fazenda
Bandeira, distante léguas, é que lhe fazem a misericórdia de acabar de matá-lo,
abrindo-lhe o peito e retirando-lhe o coração, na visão rubra de cujo órgão o
facínora dá por satisfeito a sua vingança.
O cadáver
ficou estendido no alpendre da fazenda, e só teve sepultura dias depois, quando
um volante ali passou.
No dia da
chacina, em Geremoabo, base de operações, quartel-general, distante quatro
léguas do local do crime, havia nada menos de 60 soldados sob o comando de três
oficiais. O filho do velho Salina, de nome Fabiano, como vimos, milagrosamente
escapou do massacre, vara, de um fôlego, as quatro léguas, detendo-se dentro
das ruas da vila, onde a força goza de ócios amáveis. O jovem sertanejo chega a
ofegar, e pálido de morte, desvairado de espanto, com as roupas em tiras,
pernas a sangrar, cabelos ao vento, conta o sucedido, engasgado de medo e de
emoção.
Pede um
socorro urgente que lhe salve o pai. Já é noite.
Os três
comandantes fitam-se, e o quadro horrível da mortandade passa-lhe, num relance,
ante os olhos, numa visão apavorante de sangue e corpos apunhalados.
Consultam-se em conselho demorado de pusilanimes e poltrões. E só no dia
seguinte, às 9 horas da manhã, um deles depois de ter dormido até às 8, feito
vagarosamente a "toilette", barbeado, escovado, e bebido com lentidão
aristocrática o seu café com leite e torradas, é que partiu no encalço dos
bandoleiros que, durante a noite, no terreiro da fazenda Bandeira, com o cadáver
de Manuel Salina ao lado, levaram a sambar, embriagados, ao toque de harmônica
e pandeiro."
( Texto
transcrito da obra LAMPIÃO/Ranulfo Prata/Editora Traço)
http://www.luizalberto.com.br/l03.html
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