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quinta-feira, 28 de março de 2013

OS CRIMES de LAMPIÃO


Por: (Ranulfo Prata)

Teria sido Lampião, realmente, um homem violento, cruel, frio, capaz de cometer os mais horrendos homicídios? Sim. A descrição de alguns dos seus crimes feita por Ranulfo Prata, não deixa dúvida alguma de que, antes de ser o Robin Hood descrito por alguns de seus historiadores, o cangaceiro-chefe, foi acima de tudo desapiedado para com suas vítimas.

"Vila Queimadas é uma humílima estação da estrada de ferro que liga a capital baiana a Juazeiro, aquela mesma que nos tempos da campanha de Canudos fez-se conhecida por ser ponto de desembarque das tropas expedicionárias.

Euclydes da Cunha assim a ela se refere:

"O casario pobre, desajeitadamente arrumado pelos lados da praça irregular, fundamente arada pelos enxurros, um claro no matagal bravio que o rodeia e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, salteadamente pontilhadas de morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho, completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas"

Ainda hoje é assim.

Como todos os povoados da região parece sempre em "franco descambar para tapera em ruínas", mas não morre nunca, perdura num estado miserável de cachexia, animado de eterno sopro de vida.
Lampião uma manhã fez-lhe uma surpresa de bater-lhe as portas. Tomou de assalto o quartel e nele prendeu todo o destacamento, composto de sete soldados e um sargento. Deixando-o sob a guarda dos cabras, que assim transformaram os pobres policiais, de carcereiros que eram, em encarcerados, foi a uma pensão e pediu que lhe servissem lauto almoço, fazendo questão de que todos os hóspedes, viajantes e pessoas outras, sentassem também à mesa para comer em sua companhia.

Houve quase um banquete. O dono da casa apressou-se em servir o hóspede, matando galinhas, e preparando pratos especiais, atulhando a mesa de iguarias e bebidas várias.

O senhor dos sertões abancou-se à cabeceira e a refeição correu sem novidade, o anfitrião a sorrir amável para todos, principalmente aos viajantes que riam um tanto forçados, deglutindo mal, com espasmos no esôfago.

Ao findar, pagou largamente e encaminhou-se para o quartel onde os seus prisioneiros, lívidos e com o coração a bater forte, aguardavam a sentença, que não demorou muito.

Paga um deles e leva-o para o oitão da cadeia. Ordena que se ajoelhe. O homem dobra as pernas que mal sustém o corpo e finca os joelhos no chão. Tem um olhar intraduzível de pavor. E friamente, serenamente, o matador bárbaro saca do punhal de 78 centímetros de lâmina e crava, num golpe certeiro e veloz, na região preferida – a fossa supra-clavicular. A arma, agudíssima, vara facilemnte o mole dos tecidos, como um palito à manteiga.

A experiência ensinou-lhe ser ali ótima região, sem obstáculos ósseos que lhe resvalem o punhal. Ao introduzi-lo oblíqua à direita ou esquerda, conforme o lado ferido, transfiando, assim, o mediasno. O homem, sangrado como uma rez, dá um salto, lança nos ares um urro medonho e cai de borco, já cadáver.

Ele volta à prisão, retira o segundo condenado e repete a cena com a mesma indiferença e frieza. O mesmo golpe certeiro, o mesmo salto, o mesmo urro medonho que põe nos nervos mais equilibrados um tremor de angústia mal definida.

Arrasta para fora o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto e o sétimo. Quando chega a vez do sargento Evaristo muitas pessoas do lugar intercedem, pedem, imploram em favor do desgraçado. Que, o poupe, ao menos, que o poupe, animam-se a dizer alguns. Já correu muito sangue, deixe a vida ao pobre sargento que tem família numerosa e é homem bom, e querido. Lampião fita-o, nota-lhe os beiços alvacentos a tremerem, a brancura das feições transtornadas, as pernas mal firmes, e diz numa zombaria macabra:

Não sei pruque nunca vi homem corado na minha frente!

E consente-lhe a esmola da vida, num gesto desdenhoso de vencedor terrível.

Manda enfilerar os cadáveres.

Quando eu sai que enterre, ordena.

E virando as costas vai bebericar numa venda próxima.

Além desta mortandade ultraja o juiz e exige da população miserável mais de uma dezena de contos.

Trabalhavam alguns homens na estrada de rodagem, no sítio Carro Quebrado, entre Chorrochó e Barro Vermelho, sob a direção do capataz José Grande, quando foram surpreendidos pelos bandoleiros. Lampião desce da sua montada e caminha para eles de cara fechada, sobrecenho carregado e diz aos trabalhadores estarrecidos:

- Já avisei a todos Qui não quero este negóço de estrada, Qui só serve p’ra passar macaco atrás de mim, vocês não ligaro o que eu apreveni e por isto vão morrê.

Estabeleceu-se enorme confusão, durante a qual muitos fogem em louca corrida pelo mato.

Nove deles, porém, são pegados, subjugados e juntamente com o capataz, que não conseguiu escapulir, foram sangrados.

E a malta, minutos depois, abalava num galope, deixando nove corpos ensangüentados a esteirar a estrada deserta.

Aproxima-se a caterva de Capim Grosso. Os espiões informam, porém, que a vila se acha guarnecida. Lampião torce caminho, receoso e cheio de cautelas. Ladeia a população e toca para adiante na sua caminhada perene.

Mas tem "boa" estrela, o acaso entrega-lhe nas mãos uma presa valiosa.

Aprisiona nas vizinhanças da vila o seu escrivão, parente do coronel João Borges, de Uauá. Como usa também dos processos civilizados de americanos, exige cinco contos da família da vítima em troca de sua liberdade. Vai o emissário à povoação e estipula o negócio.

A mulher não possui tão grande quantia. O seu marido é um simples escrivão de roça, mal ganha para passar com a família numerosa.

Entra em desespero. Quer salvar a vida do esposo seja a que preço for. Corre, numa aflição de meter dó, à casa dos parentes, dos conhecidos, de toda a gente que possa socorrer com uma esmola. Pede pelo amor de Deus que lhe dêem, que lhe emprestem qualquer coisa. É uma vida a ser poupada com ele, a vida preciosa de seu marido.

Diante daquela angústia imensa, toda a vila se comove e faz-se uma coleta. Povoação paupérrima, para somar cinco contos foi preciso que quase todos concorressem com um auxílio. E a quantia, afinal, após penoso angariar, se completa. A mulher pega do volume de cédulas, aperta-o entre os dedos trêmulos, e com o coração repousado numa grande alegria, entrega ao emissário.

- Pelo amor de N. Senhora, diga ao capitão que o solte logo, implora, numa ânsia, desejosa de libertar-se sem demora daquele pesadelo.

O povoado fica à espera do refém.

Lampião recebe o dinheiro, conta-o lentamente, molhando os dedos na língua, desaperta da cintura "o papo de ema" que está túmido de notas graúdas, desdobra-o e acondiciona, meticulosamente, mais aquele pacote.

Depois, lerdo, caminha para a vítima e lhe diz:

- Pro mim você tá livre, mas os meus meninos precisa ajustá conta com você.

Era a quebra infame da palavra que garantira a vida do prisioneiro. Da sua palavra, cujo cumprimento ele alardeava nos sertões, dizendo, arrogante, como num juramento:

Palavra de bandido!

E afasta-se, indiferente.

Corisco apossa-se do preso, apunhala-o e mutila o cadáver, abrindo-o em bandas, como aos bodes nas feiras sertanejas.
* * *
Manuel Salina e sua numerosa família, composta de cinco filhos e duas filhas, moravam no sítio "Almacega", de sua propriedade, distante de Geremoabo quatro léguas.

Vive tranquilo, feliz, do plantio rudimentar da mandioca e de cereais, nos bons invernos, e de limitada criação de gado, cabras e carneiros.

Certo dia, dia fatídico que lhe havia de trazer aniquilamento total, fornece a uma volante que lhe passa na porta, ligeiros informes sobre a direção tomada pela horda que ali transitara dias antes. E foi só.

Graças ao seu serviço de espionagem soube Lampião da denúncia, crime para ele sem apelação nem recursos, e para o qual só há uma sentença: - a morte. Não esquece, não perdoa. Cedo ou tarde, vinga-se. Mandou recados ao velho Salina, dizendo que lhe havia de pagar.

O sitiante sabendo com quem tratava, tendo certeza de que a promessa se realizaria, mudou-se para Geremoabo, onde estaria bem guardado pelo fuzis que protegiam o quartel-general da campanha. Abalou com toda a família, deixando ao abandono completo casa, roça e criações.

E os dias correram.

Antonio Salina gastava as horas perambulando tristemente pelas ruas da "vila secular", debruçando-se nos balcões das bodegas ou estirado na rede, em sestas longas, numa ociosidade de afligir seus nervos de homem acostumado aos trabalhos roceiros, braçais, de labuta constante, de sol a sol.

A inatividade o adoentava.

E não era só a inércia. Em casa, a farinha, base de alimentação, estava a faltar, os últimos sacos se esvaziavam como se fossem despejados. A família era grande e de gente sadia que comia bem. Que fazer? Comprá-la, pelo preço da seca que estava nas feiras, não era possível, não tinha dinheiro para tanto. O remédio para a aflição em que se achava era ir ao sítio colher umas mandiocas e fazer uma farinhada. Mas, e a ameaça terrível que lhe pesava sobre a cabeça branca e já cansada?

Consultou amigos.

Não vá, foi o conselho unânime.
Mas é só por um dia e uma noite.
Explicava:

- Vou com os meninos de madrugada, e quando o sol clarear já estaremos de mandioca arrancada. Pelo meio-dia a raspação está no fim e o forno já quente. Ao esfriar do sol as primeiras fornadas estão saindo, e antes do galo amiudar estaremos, de novo, dentro de Geremoabo. Será serviço ligeiro, de quem tem pressa.

E assim foi. O velho com toda a família partiu para Alma cega, para a farinhada trágica. E na tarde de 13 de maio de 30, quando o serviço ia mais animado, todos entregues as suas ocupações, Lampião risca o cavalo, repentinamente, no terreiro varrido. A malta invade, num atropelo ruidoso, a casa de farinhar. É um momento angustioso para os presentes. A primeira menção é de fuga, mas se acham tão rapidamente envolvidos por todos os lados que o desejo logo se esvai, ficando todos como paralisados nos lugares em que se encontram, as mulheres chorando, os homens de olhos e braços caídos como se fossem manequins.

Pai e filhos são logo presos.

Lampião com ares solenes, relembra ao velho a perfídia de o Ter denunciado à tropa e diz que agora irão pagar novos e velhos.

Lança mão de um dos rapazes, sertanejo hercúleo, de mais de 20 anos, e cuidadosamente o amarra a corda e relhos, ao pai, braço com braço, perna com perna, só de um lado, tronando-os estranhamente xifopagos. Saca da cinta a pistola "parabellum" e dispara à queima roupa, na nuca do moço, cuja massa muscular toda se agita em extremeções violentas e emborca para a frente, arrastando na queda o pai. É um cadáver que faz cair um vivo.

Lampião curva-se sobre o bolo formado pelos dois corpos, e os separa a golpe de punhal, cortando as amarras. Ergue o velho pela gola, num violento impulso e o põe de pé, de novo. Pega no segundo filho e o ata do mesmo modo ao pai, braço com braço, perna com perna. Outro tiro de "parabellum" na nuca e outro baque de corpos embolados. Repete mais uma vez a cena com o terceiro filho, sem omitir um detalhe, com os mesmos cuidados lentos. Escapa o quarto, o mais moço, porque um dos bandidos ordenara-lhe subir no teto da casa e quebrar todas as telhas para maior castigo dos culpados. Apanhando-se no telhado, o rapaz pula do alto e desaparece na caatinga, indo parar em Geremoabo.

As mulheres são poupadas. Mas não o são os companheiros de farinhada de Salina, abatidos, um a um, como animais de corte: Boa Batata, Cirillo Batata, José Grande e Antonio Batata.

Finda esta parte voltam-se então para o velho, que até ali estivera a espectar o morticínio. Cortam-lhe as duas orelhas, furam-lhe um olho, quebram-lhe os dentes e castram-no.

Obrigam esta figura miserável de homem a subir num animal encangalhado e partem. Lampião exige que ele vá lhe mostrar a morada de um outro filho, distante três léguas. O rijo sertanejo, que não se abate de todo, apesar das lesões graves, lá se vai pela estrada como um símbolo vivo e doloroso e sangrento de toda aquela gente que vive abandonada, naquele deserto de espinhos, de Deus e dos homens. Segue aos cambaleios, com a cabeça branca toda vermelha de coágulos, o olho vazado a porejar lágrimas de sangue, a boca cheia de espuma escarlate.

Adiante, muito adiante, já noite avançada, chegam à casa do filho, vaqueiro do capitão Angelo, de Geremoabo.

- Eu vou batê na porta mas quem responde é você, seu véio safado, diz Lampião, apeando-se.

Bate com os nós dos dedos na porta humilde. Alguém fala de dentro. O velho responde, cá de fora. Reconhecendo a voz, o filho ergue-se ao abrir a porta recebe a queima-roupa, um tiro no peito.

Faz-se silêncio de novo. O suplício de Manoel Salina continua, num lento arrastar, para o seu calvário, que não chega. Caminham...caminham... Só na fazenda Bandeira, distante léguas, é que lhe fazem a misericórdia de acabar de matá-lo, abrindo-lhe o peito e retirando-lhe o coração, na visão rubra de cujo órgão o facínora dá por satisfeito a sua vingança.

O cadáver ficou estendido no alpendre da fazenda, e só teve sepultura dias depois, quando um volante ali passou.

No dia da chacina, em Geremoabo, base de operações, quartel-general, distante quatro léguas do local do crime, havia nada menos de 60 soldados sob o comando de três oficiais. O filho do velho Salina, de nome Fabiano, como vimos, milagrosamente escapou do massacre, vara, de um fôlego, as quatro léguas, detendo-se dentro das ruas da vila, onde a força goza de ócios amáveis. O jovem sertanejo chega a ofegar, e pálido de morte, desvairado de espanto, com as roupas em tiras, pernas a sangrar, cabelos ao vento, conta o sucedido, engasgado de medo e de emoção.

Pede um socorro urgente que lhe salve o pai. Já é noite.

Os três comandantes fitam-se, e o quadro horrível da mortandade passa-lhe, num relance, ante os olhos, numa visão apavorante de sangue e corpos apunhalados. Consultam-se em conselho demorado de pusilanimes e poltrões. E só no dia seguinte, às 9 horas da manhã, um deles depois de ter dormido até às 8, feito vagarosamente a "toilette", barbeado, escovado, e bebido com lentidão aristocrática o seu café com leite e torradas, é que partiu no encalço dos bandoleiros que, durante a noite, no terreiro da fazenda Bandeira, com o cadáver de Manuel Salina ao lado, levaram a sambar, embriagados, ao toque de harmônica e pandeiro."

( Texto transcrito da obra LAMPIÃO/Ranulfo Prata/Editora Traço)

http://www.luizalberto.com.br/l03.html

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