Por: Rangel Alves
da Costa(*)
O sertanejo de
então já tinha conhecimento de homens - e caboclos iguais a ele - que se
embrenharam pelas caatingas, armados e perigosos, confrontando os poderosos e
sendo perseguidos pela polícia. Do mesmo modo sabia o que havia acontecido para
que resolvessem resolver os problemas a partir da revolta armada. E, fato
importante, mesmo conhecendo a inglória daquela luta, achava justificada e
corajosa aquela ação. Ele também, na proporção do seu sofrimento, era vítima da
mesma motivação cangaceira.
Que se diga,
entretanto, que a hoste cangaceira foi quase a única opção para muitos de
conturbada vivência em sociedade. A ilusão daquela vida de coragem e destemor,
aliada aos problemas íntimos surgidos, fez com que muitos se embrenhassem nas
matas em busca de refúgio e de suporte para seus sentimentos revoltosos e
vingativos. Desse modo, também uma leva de malfeitores, bandidos cruéis e
fugitivos passou a fazer parte dos primitivos bandos cangaceiros.
Mas os bandos
não eram formados apenas por gente da pior estirpe. Ao menos mais tarde não foi
visto assim. Lógico que continuaram presentes aqueles que haviam acabado de
sair de refregas sangrentas pessoais ou familiares, mas não de modo
generalizado. Tome-se como exemplo aqueles meninos e meninas que arregimentaram
as forças de Lampião. Como será visto mais adiante, muitas vezes não tinham nem
idade para já entrar no bando com qualquer mácula. Diferentemente ocorreu em
ocasiões passadas, com outros grupos cangaceiros.
Os primeiros
cangaceiros foram homens arregimentados no próprio meio sertanejo mais sofrido
e miserável e dentre aqueles que não suportaram mais a situação vigente.
Primeiro através de homens destemidos, de cabras com “sangue no olho”, e estes
acompanhados por aqueles jagunços que saíram das tocaias coronelistas - trazendo
consigo as experiências do gatilho, da atrocidade e da frieza para matar -
para, na maioria das vezes, lutar contra o sistema que brutalmente haviam
alimentado.
Entretanto,
não demorou para que outros cabras da pior reputação também adentrassem no mundo
cangaceiro. Impossível se pensar em antecedentes criminais num sertão tomado
por rixas, vinganças, violências de toda ordem. De modo diverso do que
acontecia no bando de Lampião, onde não era qualquer um que recebia aceitação,
os grupos primitivos não faziam uma avaliação mais aprofundada daqueles
que fossem chegando e se mostrando dispostos à luta.
A derrocada
desses bandos primitivos deve-se muito às desorganizações dentro do próprio
grupo, e tendo essa mistura de homens valentes com bandidos comuns e reles
homicidas uma das causas de sua desestruturação e esfacelamento. Mas a luta
continuava protagonizada por aqueles que sabiam o que queriam com aquela guerra
sertaneja. Neste sentido é a afirmação de que Lampião, como verdadeiro e
capacitado discípulo, levou adiante a luta iniciada por Antônio Silvino.
Contudo, em causa própria.
Talvez fossem
a magnitude e fama alcançada pelo seu grupo, que tornou o Capitão cuidadoso com
a chegada de novos integrantes. Não podia descuidar e infiltrar qualquer um no
seu meio. Ora, se a morte já rondava pelos arredores, descabido seria chamá-la
para o coito. Se as desconfianças já eram existentes diante de determinadas
ações de alguns cangaceiros, de coiteiros e outros colaboradores, mais ainda
quando se tratava de acolher gente nova. Mas nem tudo podia ser controlado como
deveria. Impossível diante de situações inusitadas.
Era difícil
dizer não quando alguém procurava o bando por indicação de um conhecido. E
Lampião tinha amigos que não podia deixar de atender. Desse modo, se um cabra
chegasse desejoso de entrar naquela vida e levando consigo um bilhete rabiscado
por um valoroso conhecido, outra coisa não restava a fazer senão, em primeiro
lugar, tentar dissuadi-lo a não optar por aquela vida de tanto sofrimento e
dor. Mas, se ainda assim, o postulante se mostrasse disposto a ficar, então era
iniciado nos segredos da vivência e luta cangaceira.
Situação
também inusitada ocorria quando um cangaceiro despontava na vereda ou saía de
dentro do mato trazendo consigo uma bela sertaneja. E assim aconteceu
muitas vezes. Famosos, idolatrados e desejados por muitas das mocinhas
caboclas, os rebeldes catingueiros não perdiam tempo quando se engraçavam de
uma ou outra. Algumas delas simplesmente resolveram fugir de casa e seguir seu
escolhido; outras foram praticamente retiradas dos braços das famílias, ainda
que as mocinhas não se mostrassem contrárias ao rapto. Mocinhas não, muitas
ainda meninas, adolescentes de doze ou treze anos.
Lampião não
via com bons olhos essa ação de seus cabras. Achava uma crueldade que aquelas
verdadeiras meninas tivessem deixado suas bonecas de pano pelos cantos dos
casebres e levadas para um meio difícil de ser suportado até pelos mais
valentes e corajosos. Mas acabava reconhecendo que não havia jeito a dar.
Principalmente porque sabia que nenhuma estava ali à força, ainda que não
tivessem nem idade para raciocinar sobre a decisão tomada e muito menos sobre
os sofrimentos que teriam de suportar dali em diante.
Continua...
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho
Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O
Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e
"A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso",
"Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos
Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da
Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo -
Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para
publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP
49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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