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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Lampião e outras histórias - “Relato estranho do massacre de Lampião”.

Por Doizinho Quental

   
Por falar em controvérsias, uma das maiores  que existem, em se tratando de cangaço, é sobre a morte de Lampião. Ainda hoje, apesar de mais de sessenta anos da sua chacina e, da maioria dos grandes escritores atestar que a volante de João Bezerra realmente metralhou Lampião, alguns escritores afirmam e até pormenorizam situações  que levam a crer que o grande rei do cangaço foi envenenado em 28 de julho de 1938, nos grotões de Angicos, Sergipe.

Relatamos abaixo, os principais depoimentos a este respeito, inclusive aquele que chamamos de “Relato estranho”.

Este depoimento, segundo Frederico Bezerra Maciel, em seu livro “Lampião, seu Tempo e seu Reinado, Sexta edição da livraria Vozes, de 1987, foi prestado pelo cangaceiro denominado “Paturi”, que, conforme o mesmo, naquele dia, fora designado para a “sentinela-do-sono”.

“Naquela derradeira noite do Capitão, eu fui escolhido para sentinela-do-sono. Tarde da noite, o Capitão e Maria Bonita, que estavam nas melodias, assopraram o candeeiro para dormir. Noite fria, serenando, estiando, serenando, assim.
Quando foi de madrugada, ainda escuro, Maria Bonita saiu da barraca, acendeu o fogo para ferver água na panela de barro. Botou dentro pó de café e pequenos tacos de rapadura.
Logo o Capitão apareceu de manga de camisa, escovando os dentes, de junto de uma pedra grande defronte da barraca. Alguns cangaceiros foram se achegando, sem armas, caneco na mão, para o café ali fumaçando. Devia começar primeiro pelo Capitão, era o chefe. Ele encheu o caneco e bebeu ligeiro sem carne assada e farinha, sem nada, puro. Adispois os outros foram fazendo o mesmo. A gente tinha de viajar logo. 
De repente, o Capitão soltou o caneco no chão. Parece que sentiu gastura, porque passou a mão rodando pela barriga. Deu uns passos largos, sem prumo e caiu na rede ainda armada na barraca. Deitou só o corpo, as pernas caídas de lado de fora. Eu “ajutorando” Maria Bonita a juntar os troços, que a gente ia sair cedo, vi tudo. Ela se queixava de dor de cabeça e os beiços queimando. Dizia que foi adepois que “exprementou” o café para ver se estava bom de doce, um tiquinho de nada molhado e “ponido” na palma da mão para lamber. Aí, eu avisei a Maria Bonita. Ela, deixando a bacia, correu para ver. Eu corri também. Chegou logo Luís Pedro e Vila Nova. Num instante o capitão virou a bola do olho para riba, ficando só o branco, e abriu a boca. Luís Pedro olhou o pulso e o coração e disse: - Tá morto! Chorando, ele tapou com as mãos os olhos do capitão e apanhou o chapéu dele. Aí eu disse: - É veneno! Maria Bonita aperreada, sacudiu a cabeça dele e os ombros. E ele sem ação, morto mesmo. Tive, na hora, o maior desgosto de minha vida, os olhos chorando. Maria Bonita, coitadinha, toda agitada e desesperada, gritou: - Virgulino morreu! Eu gritei repetindo: - o Capitão morreu! O Capitão morreu! Mergulhão, que estava deitado no pé da caraibeira, levantou-se todo espantado e perguntou alto: - o Capitão morreu? Aí eu vi logo cangaceiros cair ali, de todo jeito, para frente, para trás, para todos os lados, de junto da panela de café. Maginei comigo mermo: - o veneno era forte era danado!
Eu acho que algum macaco da volante emboscada, com os gritos e os mexidos no coito, passou fogo em Amoroso. Ele tinha ido ver água talvez para o Capitão banhar o rosto. E quaje igual, outro tiro, que pegou Mergulhão. Atrás veio logo uma trovoada de bala! Aquele despotismo que nem deu tempo mais de pensar! Aí era o causo de se salve quem puder, como diz o outro. Assim de surpresa, bala para todo lado e naquele cafus, como era que a gente podia tomar posição e brigar? Aí me soquei dentro de um buraco comprido e baixo, que eu sabia. Ficava no pé do morro, próximo da gruta e atrás da barraca do Capitão. O buraco só dava para caber o  corpo pragatado, a barriga no chão, sem poder se virar mais, muito apertado. Na frente tinha moita de mato tapando. Fiquei aí, os braços incomodados, não tinha posição para botar eles. Mesmo querendo, eu não podia sair dali. Do lado de fora era bala por todo canto zinindo. Adispois, as pernas ficaram “drumentes” moles, bambas só molambo. Fiquei sem mexer. Mexia só os olhos e o baticum do coração. O resto estava morto.
Vi a hora das balas me pegarem. Deixa que chegaram a açoitar a moita. Foi Deus e a Santíssima Virgem que me livraram. Dali de bem de riba, eu fiquei “pombeando” tudo pela brecha que fiz na moita.
O horror era grande! As balas vinha de magote. Foi torada de bala a rede do Capitão, que caiu com todo o peso no chão. O pano da coberta da barraca avoou, ficando só as varas. Vi Mergulhão cair. Adispois foi Maria Bonita caindo, as mãos cheias de sangue apertando a barriga. Luís Pedro deu uns tiros, mais arriou logo. Vila Nova correu. Não deu tempo de ninguém brigar. Não teve “luita” não. Possa ser que mais algum cabra de lá de riba do riacho desse besteira de tiro, sem palpite, à toa. A gente e o riacho todinho se acabando na bala. Não posso dizer nem o que foi. Era a confusão do inferno! Mas, não demorou muito tempo, não. Foi ligeiro, ligeiro... coisa de meia hora.
Quando tudo parou de atirar, começou a chegar macaco de todo lado, quer dizer, de riba do alto das Perdidas e beirando o pé da imburana, passando “dadonde” eu estava, coisa de duas braças. Eles vinham se achegando devagar, com medo. Um volante, sem ser alto, caboclo forte, mancando da perna, desceu das Perdidas. Parecia o comandante, porque dava ordens. Mais tarde, já livre dali, eu soube que era o tenente João Bezerra. Junto com ele caminharam três macacos, deviam ser ordenanças. Alguns macacos subiram um pouco o riacho, disparando a espingarda nos matos para espantar se tinha gente.
O Comandante foi direto para a barraca do Capitão, como que determinado e sabendo. Eu vi quando ele cascavilhou os troços e pegou o papo-de-ema e a mochila com cinco quilos de ouro que o Capitão ia mandar para a sua filha. Me arrependo ainda não ter pegado aquelas coisas, também na hora nem me alembrei.
Os macacos, quiném urubus, deram em riba dos cangaceiros caídos, atrás do saqueio de dinheiro, ouros, jóias, outras coisas mais. Não tinham paciência de tirar os anéis dos dedos, cortavam logo os dedos.
Sentado numa pedra, o comandante deu a ordem: – cortem as cabeças dos cangaceiros! Aí foi um alvoroço, todo mundo gritando: - cortar as cabeças!... cortar as cabeças!... Não sei como não morri vendo aquele horror! Parecia um bando de bicho do mato, de feras selvagens, dando gargalhadas e chamando toda nação de nome feio. Levantavam as cabeças dos mortos, segurando pelos cabelos, botavam o pescoço escanchado numa pedra, ficava uma coisa feia: a boca escancarada, os olhos arregalados! E metiam o facão. Um macaco furando, furando, de pedacinho, com a ponta da faca no redor do pescoço de um cabra até separar do corpo. Outro rolou o facão no pescoço e, quando puxou a cabeça, saiu a guela de dentro do corpo. Foi uma mangação danada! Nenhuma cabeça era cortada de uma só vez. Davam mais de um golpe. Vi uma coisa horrível, que nunca um cangaceiro fez e só bicho faz: os macacos lamberem o sangue da folha do facão melado! A cabeça cortada era levantada pelo cabelo e mostrada, todos dando risada de gosto, mangando e dizendo nomes feios. Tinha cangaceiro meio vivo, mexendo os olhos e falando. Cortaram assim mesmo a cabeça deles com vida! A sangreira era medonha! Tudo melado; macaco, facão, pedra, chão, água, roupa, “tudim”. Eu vi tudo, já era dia claro, de dia. Naquele meio, veio a ordem do comandante para acabar depressa. Ele estava sentado numa pedra, o pé amarrado, e muito zangado, acho que era de dor.
Eu tive dó quando um macaco levantou a cabeça de Maria Bonita, dependurada pelos cabelos compridos. O outro macaco, que tinha o facão na mão, perguntou meio espantado: - inda tá viva, bandida? Cadê o dinheiro? Ela respondeu bem fraquinho: - não tenho, não! – Então lá vai... E cortou o pescoço dela com duas facãozadas. O corpo ficou batendo no chão como a galinha sangrada, e as pernas se descobrindo. Aí eles arregaçaram a saia dela para espiar o resto e começaram a bolir com as mãos, dizendo lérias. Tive tanta raiva que veio vontade de sair e avançar naqueles dois sujeitos safados, desculpe a má palavra.
Chegou a vez do Capitão. Um macaco conheceu e disse: - é o peste do cego! Danou uma coronhada de fuzil na cabeça e foi avisar o comandante. O outro ficou cortando o pescoço do Capitão em riba de uma pedra. Quando acabou, a cabeça escorregou e rolou pela ladeira da pedra até o chão. Ele pegou ela e levou para mostrar ao comandante, que ficou cercado de macaco, examinando e falando.
Tudo acabado, botaram as cabeças em três sacos, as bocas amarradas num pau. Sim, botaram, também, um corpo com cabeça dentro de uma rede dependurada noutro pau. Tudo mode ser carregado, nos ombros de dois. Adispois os macacos foram se lavar nas poças mais de riba, de água limpa.
Começaram a ir embora. O comandante numa cadeira feita dos braços de dois macacos. Levaram todo o saque. Foram subindo, um atrás do outro, feito formiga, pelo caminho do alto das Perdidas.
Fiquei ali deitado o dia todo. A cabeça zoava todinha, o corpo doía, quiném tinha apanhado uma pisa de cacete. Faltei coragem para sair dali. Eu via macaco pulando até pelos galhos mais altos dos pés-de-pau. Não tinha fome, não. Mas a sede era de matar, aperreando. Senti uma agonia doida. Mas, esperei, esperei... O silêncio muito grande. Os passarinhos assustados não voltaram mais. Fechava os olhos e enterrava a cara no chão com medo de ver as almas daqueles defuntos aparecerem sem cabeça. Fiquei tão assombrado que sentia algumas vezes o gume do facão passar no meu pescoço. Rezei tanto a Nossa Senhora do Deserto que cheguei a suar de pingar.
Tardinha, fui saindo com medo de assombração e de tudo. Caminhava de quatro pés, não podia ficar de pé causo das pernas feito molambo e tremendo. Eu queria ficar fora da vista daquele açougue de carne de cristão. Subindo o riacho cheguei no dependo do alto, os joelhos esfolados. Me aprumei, fui andando, assim cambaleando, areado, até poder sair correndo, ligeiro ou devagar, a noite inteirinha, até chegar na casa de meus pais. Tava mais morto do que vivo. Passei aquele dia deitado tomando tudo o que era de meizinha que minha mãe preparava e me dava. Comida de panela comi bem pouquinho. De noite, já no outro dia, meu pai me levou para casa de um tio meu, viúvo, que morava sozinho, lugar mais seguro, um esquisito. Estou lá este tempo todim, fazendo planta, dando limpa, xaxando terra nos pés, colhendo legume e capucho de algodão. Também no cuido das criações. Sem sair pra nenhum lugar. Somente agora saí praqui causo minha mãe mandou pedir perdão a Deus. Adispois desta conversa eu quero que seu vigário escute meus pecados na confissão e me comungue na missa.

Para satisfazer a curiosidade do Leitor:

Esse moço, que escapara da morte para contar a história, logo depois, feito embarcadiço de um vapor do rio São Francisco, rumou para o Sul, sem documentos, de nome novamente trocado, para começar nova vida.
E desapareceu...”

NOTA: “Estas histórias começaram a circular alguns anos após a morte de Lampião, duram até hoje, e têm no seu maior defensor o padre Frederico Bezerra Maciel que, no volume V de sua obra, enumera 21 itens para mostrar a autenticidade da teoria por ele esposada de olhos fechados.

Todos os itens – do 1º ao 21º - não resistem a uma análise feita com rigor científico e serenidade histórica. É impossível que milhões de pessoas tenham-se enganado, no espaço de 50 anos, inclusive pesquisadores e estudiosos, muitos dos quais profundos e incansáveis, em função de meia dúzia que se querem arvorar de donos da verdade.” Do livro Lampião na Bahia de Oleone Coelho Fontes.
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Um comentário:

  1. Anônimo21:15:00

    Pois é Mendes, acho mesmo um relato estranho, este do cangaceiro Paturi. Não tenho autoridade para afirmar ser mais uma das fantasias que surgiram na saga do cangaço, contudo, é caso para os grandes pesquisadores analisarem em profundidade.
    Abraços,
    Antonio José de Oliveira - Povoado Bela Vista - Serrinha - Bahia

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