Por Rangel Alves da Costa*
E foi tanto
sangue respingado por cima da terra espinhenta e da mataria rasteira, tanto
cadáver espalhado pelas veredas e arredores das moitas, tantas mortes e
destruições que as aves carnicentas passaram a ignorar o terrível e descomunal
festim. É assim que até hoje se comenta pelos rincões do Mundaréu, região onde
se travou o maior dos combates entre jagunços de velhos e afamados coronéis
nordestinos.
Na sedenta
busca de delimitar territórios de mando, na incansável tentativa de ser
reconhecido como maior e mais poderoso, e na ânsia de ser cada vez mais temido
e respeitado, o coronel foi trilhando seu caminho passando por cima de tudo e
de todos. Dispor como quisesse das classes empobrecidas e submissas era fácil
demais. O problema todo estava em enfrentar outros coronéis de igual poder e
valentia.
E foi duma
rixa nascida entre coronéis que descambou no maior derramamento de sangue que
já se viu nas brenhas do sertão nordestino. Tudo teve início quando na região
de Mundaréu só restavam dois coronéis medindo forças para ver quem tomava o
lugar do falecido Coronel Totonho Cabreúva. Este tido e havido como o maior,
mais poderoso e mais temido de todos que um dia se arrogaram no uso da patente
de coronel dono do mundo.
Com a estranha
e comentada morte do Coronel Totonho, passando desse mundo a um bem pior em
cima da cama de um bordel, o trono de mando ficou praticamente vazio. Mesmo que
outros proprietários se arvorassem da fama coronelista, somente dois tinham
bala na agulha para arrogar para si a nefasta herança: Coronel Sizenando Quipá
e Coronel Tertuliano Jerimum.
Cada um desses
coronéis contava com mais de vinte jagunços. Homens de pouca conversa e de
muita ignorância, cada um com mais de três derrubadas nas costas, viviam
guarnecendo o casarão e amoitados à espera de ordens para a prestação de algum
serviço urgente ou mais melindroso. Sempre armados até os dentes, conhecedores
da mataria, curvas e escondidos das estradas, eram exímios na emboscada, na
tocaia, na vigília para matar.
Noutros
tempos, antes da morte do Coronel Cabreúva, tanto o Coronel Sizenando como o
Coronel Tertuliano tinham por companhia nada mais que três jagunços dos mais
preparados. Guarda-costas, protetores, acompanhavam seus senhores desde a saída
na varanda do casarão aos passeios pelas terras e viagens de compromissos. Mas
agora, com cada coronel desconfiado e temendo emboscada do outro, nenhum dava
um passo se não estivesse ladeado por cinco a seis, e com os demais sempre em
alerta para qualquer necessidade urgente.
Mas haveria de
ser assim mesmo, vez que cada coronel realmente tramava a morte do outro.
Coronel Tertuliano havia escalado seu jagunço de confiança para arregimentar
mais três ou quatro cabras experientes e preparar a maior tocaia de todas para
derrubar o Coronel Sizenando. Este já havia escolhido os seus pistoleiros e
prometido fortuna a quem viesse dar a notícia do tiro certeiro no meio da testa
do inimigo.
Naquelas
paragens de imensidões, as estradas levavam a longas distâncias, porém sempre
por caminhos curtos, quase veredas. E havia uma estrada principal separando as
duas maiores propriedades dos coronéis desafetos. E era nestas terras que os
dois mantinham seus casarões e muitas outras moradias para seus jagunços e
outros empregados. De qualquer modo, tanto o Coronel Sizenando como o Coronel
Tertuliano tinham de passar por aquele caminho para chegar até a cidade.
Velhos
matreiros, cheios de ardis e artimanhas, conheciam praticamente todo o
cotidiano do inimigo, quais os dias de visita à cidade e até as horas
costumeiras em que passavam garbosos em cima de seus alazões. Por isso mesmo
indicaram aos seus homens o melhor dia e lugar para fazer a mortal emboscada, a
maior das tocaias. Entretanto, sem conhecer o plano do outro, enviaram seus
homens para quase a mesma beirada de estrada, faltando somente coisa de vinte
metros para os jagunços ficarem frente a frente.
Os homens do
Coronel Sizenando chegaram por dentro do mato, quase rastejantes, e foram se
instalando por trás de tufos de matos. Perto do meio-dia era certeza de o
cavalo do Coronel Tertuliano despontar adiante, certamente acompanhado de
jagunços também montados de guarda. E no outro lado, quase defronte, os homens
do coronel tocaiado também faziam emboscada para o galope certeiro do Coronel
Sizenando.
Já perto das
dez horas um dos jagunços do Coronel Tertuliano avisou aos outros que parecia
ouvir um barulho estranho nas proximidades. E o mesmo aconteceu do lado dos pistoleiros
do Coronel Sizenando. De cada lado um jagunço foi escolhido para vistoriar os
arredores e saber do que se tratava aquele barulho estranho no meio do mato.
Silenciosamente, se esgueirando por cima de pedras e espinhos, foram lançando o
olhar até avistar os homens do inimigo.
Assim que
retornaram para avisar aos demais, logo todos compreenderam que a situação
agora era de guerra, pois do outro lado estavam os jagunços prontos para fazer
o que a eles também havia sido encomendado, só mudando de coronel tocaiado. E
sem demora, já tencionando atacar as forças inimigas, mandaram buscar o auxílio
da jagunçada de prontidão. Quer dizer, mais uma leva de jagunços chegaria para
enfrentar os outros jagunços.
Mas os
emissários não chegaram a tempo de encontrar seus patrões para informá-los do
inusitado. Tanto o Coronel Sizenando como Coronel Tertuliano já havia montado
em seus cavalos e tomado o rumo da estrada, protegidos por outros homens. Assim
mesmo reuniram os que restavam por ali, e que não eram poucos, e correram até o
local onde os outros os aguardavam. Mas quem passasse pela estrada nem
imaginava que mais adiante, coisa de poucos passos mato adentro, homens ferozes
e armados até os dentes se preparavam para a carnificina.
Assim, o palco
estava armado para o confronto maior que já se viu no sertão. O que importava
agora não era nem derrubar o coronel desafeto que despontasse adiante, mas
acabar de vez com a jagunçada inimiga que estava tocaiada no outro lado da
estrada. E os dois grupos tinham certeza disso. Armas em punho, olhos em mira,
esperavam apenas a ordem para sair da mataria e avançar já atirando. Mas nem se
deram conta que naquele mesmo instante os coronéis despontavam pelos lados
opostos da estrada.
E quando
chegou a ordem de ataque, e ao mesmo tempo dos dois lados, os coronéis se viram
sem saída e diante de sanguinários jagunços que se atacavam mutuamente. Bala
pra todo lado, grito raivoso e de dor, sangue jorrando, sangue esguichando,
corpo tombando, e mais tiros de não acabar mais. Somente cerca de uma hora
depois o último cano deixou de fumaçar. E tanto a estrada como as beiradas ao
redor estavam cheios de defuntos, de jagunços crivados de balas. Os que
restaram com vida sumiram na mataria, mas certamente feridos para morrer adiante.
E os dois
coronéis inimigos? Os tiros que lhes acertariam ficaram na testa de seus
protetores. Assustados, os cavalos fugiram desembestados, levando no lombo o
poder que mijava nas calças e tremia igual vara verde. Chegaram aos seus
casarões soltando os bofes pela boca e jurando imediata vingança. Mas não havia
mais nenhum jagunço. Ao menos naquele momento.
Estavam sendo
preparados para a ceia de urubus, carcarás, raposas. E depois nenhuma cruz.
Apenas a história de ouvi dizer. Desacredite quem quiser. Eu acredito. No
sertão há de tudo, seu moço.
Poeta e cronista
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