Por Rangel Alves
da Costa*
Há um problema
sério - e de difícil resolução - na relação entre o historiador e a História.
Assim ocorre porque os historiadores se diferenciam perante o modo como abordam
o fato histórico. E infelizmente, no afã de se tornarem os donos da verdade,
muitos estudiosos subjugam os próprios fundamentos da História para transformar
uma dada realidade naquilo que desejam impor como verdade incontestável,
absoluta.
Sem rodeios,
necessário que se diga que chega ser absurda a apropriação, ou usurpação, que
muito historiador faz de determinados fatos históricos. Mas não que tenha
pesquisado, confrontado fontes, estudado a fundo o problema, mas simplesmente
porque acha que o seu entendimento é o correto. E está acabado. Assim, pretende
se tornar o dono da verdade e, na maioria das vezes, negando qualquer validade
às conclusões de outros estudiosos.
Veio-me a
ideia de abordar esse tema porque recebi a visita de um historiador, professor
universitário, com alguns livros publicados e cuja linha de pesquisa envolve,
dentre outras abordagens nordestinas, o cangaço e o messianismo. Conversando
sobre uma coisa e outra, espantei-me diante de sua verve contestatória daquilo
que já foi escrito, negando as abordagens feitas pelos pesquisadores, sempre
acentuando que não foi assim, que é mentirosa tal versão escrita.
Só restou
dizer que somente ele sabe de tudo, que é o dono da verdade histórica. Mas nem
precisava fazê-lo. Evitando alongar desnecessariamente a conversa e dar ao
proseado um contorno mais acirrado, simplesmente afirmei que mesmo aqueles
fatos históricos tidos como mais importantes são constantemente revistos,
reescritos e trazendo novas conclusões e, por isso mesmo, aquilo um dia escrito
como verdade absoluta pode depois perder tal caráter. Ademais, assim acontece
em todos os campos do conhecimento, onde as novas pesquisas têm o dom de
refutar as investigações anteriores.
Então, ele me
dizia ser possuidor de dados e informações que negam o que foi escrito como
verdade. No momento recordei o que meu pai Alcino Alves Costa havia escrito na
introdução do seu livro “Lampião Além da Versão - Mentiras e Mistérios de
Angico”, tratando exatamente das dificuldades de se obter informações seguras
mesmo diante daqueles que tiveram envolvimento com o fato pesquisado. Eis o que
escreveu:
“Que tristeza
sente o pesquisador quando, todo cheio de esperanças, encontra e conversa com
os que participaram dessa odisséia e, decepcionado, vê que cada um dos que
presenciou pessoalmente os acontecimentos se conflita e, com uma versão
penosamente diferente, conta a sua própria história. Os historiadores,
coitados, se perdem nesse emaranhado de contradições”.
Alcino se
refere aos próprios envolvidos nos acontecimentos históricos e que, quase
sempre tentando direcionar os fatos a seu favor ou porque procuram esquecer ou
esconder determinados acontecimentos, acabam distorcendo a realidade. E se os
próprios personagens se controvertem diante dos fatos, que se imagine o
labirinto em que os pesquisadores enveredam para retratar os acontecimentos com
a mais fidelidade possível. E ainda assim não conseguem, pois de repente surge um
pretenso suprassumo do conhecimento se arvorando de ser o dono da verdade
histórica, como ocorre com o historiador inicialmente citado.
Na História, a
verdade acaba com o próprio acontecimento, com o seu desfecho. Após isso, mesmo
ainda no calor dos acontecimentos, impossível a descrição fidedigna e a
contextualização absolutamente verdadeira do fato. Elementos são acrescentados,
outros esquecidos ou não citados, e ainda outros que chegam para florear e
permitir grandiosidade ao feito. E a cada novo escrito sobre o mesmo fato novas
nuances surgirão, tanto para negar ou que foi descrito ou para acrescentar
situações ainda desconhecidas. Dessa maneira a história vai ganhando percursos
os mais diversos e diferentes possíveis, tornando-se até mesmo como algo que,
de tanto ser manipulado e transformado, pode ser tido como pura inventividade.
A cangaceira Sila esposa do cangaceiro Zé Sereno
Desse modo,
que me desculpe o nobre amigo escritor e historiador, creio ser um exercício de
arrogância e presunção alguém querer se apresentar como o dono da verdade dos
fatos e acontecimentos passados. E não adianta dizer que tem testemunhos que
comprovam os fatos de forma totalmente diferentes, vez que até mesmo Sila,
falecida ex-cangaceira e companheira de Zé Sereno, prestou diversos depoimentos
completamente contraditórios.
O cangaceiro Zé Sereno esposo da Sila
Assim como na
vida pessoal e social, a humildade deve ser também uma característica sempre
presente no ofício do historiador. Que imagine que os escritos e as pesquisas
dos demais historiadores não estão completos como deveriam, mas não
simplesmente afirmando que tal descrição é mentirosa ou fantasiosa. Ademais,
não basta afirmar, é preciso provar. E é preciso que traga ao conhecimento da
sociedade sua irrefutável verdade histórica, algo que verdadeiramente duvido.
Poeta e
cronista
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