Por Rangel Alves
da Costa*
Parece que ela
está presente naquelas fotografias antigas onde Benjamin Abrahão retratava as
mulheres cangaceiras. Não pelas armas empunhadas nem pelas inglórias na sina,
mas pelos sorrisos sempre presentes, pelos vestidos enfeitados, pelas feições
tão próprias das nordestinas: amorenadas, bonitas, felizes diante de quaisquer
circunstâncias. Mas falo de Clemilda, sim senhor, dessa guerreira alagoana que
se fez rainha sergipana e ainda hoje orgulha não só o salão forrozeiro como
toda cultura popular.
De baixa
estatura, rosto arredondado, feições trigueiras, cabelos negros encaracolados,
usando preferencialmente vestidos rodados e floridos, com maquiagem que acentue
sua feição sorridente, assim é aquela batizada como Cremilda Ferreira da Silva,
e depois Clemilda. Verdade que hoje, perto dos 78 anos e mais de 50 anos de
carreira artística, já traz as marcas de múltiplas enfermidades pelo corpo.
Infelizmente, já foi acometida por osteoporose e agora se recupera do segundo
acidente vascular cerebral. E entristece demais não ter a presença da
forrozeira maior ecoando pelos arraiás.
A nossa
guerreira está combalida, mas não vencida. Desde alguns anos que não viaja para
apresentações, também está impossibilitada de receber e divulgar os artistas
locais no seu Forró no Asfalto, programa dominical da TV Aperipê com mais de 25
anos de sucesso absoluto. Internada, ainda em recuperação, certamente doeu-lhe
muito estar ausente dos forrós aracajuanos dessa época junina. Ainda assim as
homenagens são muitas, desde exibição de documentário, exposições a
apresentações artísticas, e todas num justíssimo reconhecimento.
Pelas raízes
que possui em Sergipe, onde vingou e se espalhou como a melhor e mais autêntica
representante da música de feição junina, até que se poderia imaginar ser a
forrozeira sergipana de folha e flor. Mas não, ainda que tenha escolhido
Aracaju como seu verdadeiro lar e toda essa terra sergipana como sua irmandade,
Clemilda nasceu em São José da Laje, no estado das Alagoas, e lá pelos idos de
1936. Ter nascido lá e vindo pra cá é outra história, e esta só pode ser
contada trazendo a lume outra presença marcante na musicalidade nordestina:
Gerson Filho.
Nasceu, pois,
em São José da Laje, mas acabou passando a infância e adolescência em Palmeira
dos Índios. A vida sem oportunidades no lugar, certamente aliada ao destino que
lhe acenava outras possibilidades, de repente se viu seguindo para o Rio de
Janeiro. Era década de 60. Na capital fluminense, trabalhou como garçonete até
conseguir, em 1965, se apresentar como caloura na Rádio Mayrink Veiga. Foi
nesta emissora que conheceu Gerson Filho, também alagoano do município de
Penedo, então artista já contratado. Assim, o destino unia a voz com a sanfona
de oito baixos.
Inicialmente
gravou ao lado daquele que viria se tornar seu esposo e a acompanharia pelas
estradas forrozeiras até 1994, quando faleceu. Mas seu primeiro disco, “Gerson
Filho apresenta Clemilda”, só foi gravado em 1967. Daí em diante o sucesso lhe
abriria cada vez mais as portas. Não somente pela artista talentosa que já
demonstrava ser, com sua voz afinadamente peculiar, mas principalmente pelo seu
jeito único de interpretar: a alegria da música se expressava com toda pujança
no gestual da cantora, no seu bailado segundo as exigências de cada canção.
Mas o casal
sabia que era na própria região nordestina, berço do forró, que estava o seu
público maior. E assim arribou do sul do país para shows e apresentações junto
ao seu povo, morando primeiro em Palmeira dos Índios e depois vindo fixar
residência na capital sergipana. Sergipe logo acolheu carinhosamente o casal.
Famosos, porém simples, humildes e verdadeiramente artistas, viviam de canto a
outro realizando shows, numa agenda sempre cheia e onde não havia escolha para
as apresentações. Participavam de programas de rádio, de auditório, se
apresentavam em grandes e pequenos circos, touradas, grandes eventos; enfim,
onde o público apreciador do autêntico forró estivesse.
Foi numa dessas
incursões pelo interior sergipano que Clemilda e Gerson Filho foram parar na
distante Poço Redondo, localidade que passou a ser uma constância na agenda dos
forrozeiros. Na cidade tornaram-se amigos do saudoso Alcino Alves Costa, tantas
vezes prefeito do lugar, que não somente os contratava como os acolhia na
própria residência. Era ali que sentado à mesa com garfadas na galinha de
capoeira que Gerson Filho mastigava pimenta malagueta inteira como se estivesse
mordendo um doce.
Alcino Alves Costa
Foi também em
Poço Redondo que surgiu uma parceria entre Clemilda e Alcino Alves. Numa das
ocasiões, Alcino mostrou à forrozeira alguns versos sertanejos que havia
escrito. E num destes estava “Seca Desalmada”, que após a feitura da melodia
pela própria cantora, em 1973 foi gravada num disco de mesmo nome, alcançando
retumbante sucesso. “Visitei o Juazeiro que fica lá no sertão, havia muitos
romeiros escutando um sermão...”. O próprio Gerson compôs um forró em homenagem
ao lugar que tanto apreciava, intitulado Forró em Poço Redondo (LP Ingazeira do
Norte, de 1969).
Anos mais
tarde, numa homenagem prestada à amiga, Alcino Alves Costa escreveu um “Tributo
a Clemilda”, cujo texto, dentre outras passagens, diz: “Sergipe tem uma dívida
grandiosa com uma celebridade de seu mundo artístico. Fabulosa intérprete que
durante décadas vem oferecendo aos sergipanos a sua extraordinária capacidade e
competência na arte de cantar a terna e meiga cantiga que tanto glorificou a
essência e singeleza da fonte musical sertaneja e nordestina. Estou falando de
Clemilda Ferreira da Silva, a nossa querida e amada Clemilda, que com sua
maravilhosa voz enterneceu e enternece o sentimento e a alma daqueles que
tiveram a felicidade e o prazer de conhecer e ouvir as suas incomparáveis
canções, especialmente aqueles de seus primeiros tempos; aqueles que não
possuíam o recurso condenável do duplo sentido.
Em quais
arquivos da cultura sergipana estão cuidadosamente guardadas as imortais
melodias interpretadas pela inesquecível companheira de Gerson Filho? Será que
Sergipe sabe da existência das majestosas "Saudade vai me matar",
"Sete meninas", "Morena dos olhos pretos", "Guerreiro
alagoano", "Meu guerreiro", "Beata mocinha" e
"Siricora"? Será que Sergipe reconhece, agradece e louva o altíssimo
desempenho e valor dessa sua guerreira e uma das maiores representantes do
cenário musical brasileiro? Não. Com certeza que não. O povo sergipano não se
lembra, ou talvez nem conheça, maravilhas como estas: "Fazenda
Taquari", "Rosa branca da serra", "Recordação de
vaqueiro", "Recado a Propriá", "Console ela papai",
"Leva eu benzinho", "Tiro o lírio", "Estou chorando
por você" e tantas outras beldades musicais que seria impossível
enumerá-las, mas que elas tanto mereciam.
Não podemos
desconhecer as tremendas dificuldades e provações que os intérpretes da
verdadeira música sertaneja nordestina, aquela do fole, do pandeiro e do ganzá,
vêm passando por anos seguidos. Sabemos perfeitamente da luta insana dos poucos
abnegados que tentam sobreviver em meio à tão medonha borrasca. Clemilda é
parte importantíssima desse reduzido grupo que vive numa inglória luta que tem
como principal objetivo preservar essa tão desprezada cultura musical nascida
nos recônditos mais escondidos e distantes dos campos, ribeiras e pés de serras
de nosso sertão caboclo”.
Por fim,
arremata Alcino, fazendo referência ao programa Forró no Asfalto (sucesso
também na Rádio Aperipê), “Ali a nossa deusa do forró canta e propaga a cantiga
de sua terra de adoção e coração, a terra sergipana e nordestina. Tudo que se
fizer por essa invulgar artista ainda é pouco. Clemilda é patrimônio cultural
de Sergipe. Deus lhe abençoe, minha querida heroína e amiga. Deusa e rainha do
forró!”.
Tais palavras
resumiriam tudo, mas Clemilda merece mais. Inegável que o sucesso alcançado foi
também fruto de sua obstinação. Poucas artistas nordestinas conseguiram levar o
forró aos grandes espaços radiofônicos e televisivos como ela o fez, pois se
tornou presença constante em programas como Cassino do Chacrinha, Clube do
Bolinha e Faustão, dentre outros. Sua discografia é vasta, incluindo desde os
primeiros discos gravados com Gerson Filho (É pra valer e Forró sem Briga), aos
lançados como artista principal a partir de 1967 (Gerson Filho apresenta
Clemilda, Fazenda Taquari, Morena Dos Olhos Pretos, Seca Desalmada, Guerreiro
Alagoano, Coqueiro da Bahia, Prenda o Tadeu e Forró Bom Demais, só para citar
alguns).
De voz aguda,
porém delicada, impondo a cada canção um acorde melodioso dos mais afinados,
Clemilda foi além da mera interpretação para também se firmar como compositora
famosa, de grande sucesso, mas geralmente em parceria com outros compositores
nordestinos. Ao lado do artista, tecia a letra, remendava, modificava, e tudo
para ficar em conformidade com sua voz. Daí que gostava de pincelar as letras
já prontas, fazendo os arranjos necessários para o alcance da melodia desejada.
E foi nesse
acuido que a grande artista foi se firmando no meio forrozeiro até alcançar a
fama tão difícil e até impensável para uma mulher já de longa estrada musical.
Contudo, se por um lado a genialidade artística de Clemilda pode ser mais
observada na sua fase de melodias tipicamente nordestinas, por vezes de
plangência romântica, seu sucesso maior ocorreu exatamente quando passou a
apimentar as letras de suas canções. Quando a música Prenda o Tadeu foi lançada
em 1985, logo se tornou em estrondoso sucesso. A partir daí emprestou duplo
sentido a outras canções, como Forró Cheiroso (Talco no Salão). Os dois Discos
de Ouro, e também de Platina, vieram dessa época.
Ainda que o
sucesso absoluto somente chegasse com maior força na fase do duplo sentido,
ainda assim estava na artista a destreza pela aceitação popular. Eis que não
apenas com letra apelativa, mas tendo por fundo a genial interpretação, e assim
porque Clemilda, com seu gingado e seu rebolado caipira, sempre foi uma atração
à parte. Por isso tanto e duradouro sucesso. E assim sempre será pela eterna
gratidão que lhe guarda o povo nordestino, principalmente sergipano, por ter a
honra e glória de acolher tão bela flor agrestina.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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