Por João de Sousa Lima
Edson,
Dulce, João de Sousa Lima e Ciça
Em 2003 imprimi a 1ª edição
do livro Lampião em Paulo Afonso e fui convidado pelo escritor Antônio Amaury
para lança-lo em São Paulo, em um evento que sempre acontecia na estação do
Braz, com o título: O AUTOR NA PRAÇA. Amaury aproveitou minha ida a SAMPA
e me apresentou aos irmãos “MANO VEIO E MANO NOVO”. Dois irmãos que tem um
famoso programa de rádio destinado aos nordestinos.
Lançamos com sucesso os livros na companhia de mais
alguns escritores da região.
No dia seguinte pedi pra Amaury me levar em uma feira
de antiguidades e no domingo nos dirigimos ao MASP- Museu de Artes de São
Paulo, onde acontece uma famosa feira de Antiguidades. Ao nos aproximarmos da
feira, a primeira pessoa que Amaury foi vendo foi o senhor “Acir” e me disse:
- João, esse rapaz, o Acir, é filho da
cangaceira Dulce!
- Vamos lá falar com ele!
Amaury me apresentou o rapaz e conversamos por alguns
minutos, depois o presenteei com um exemplar do meu livro e ele disse que só
não me levaria pra conhecer a mãe dele porque ela residia em Campinas e estava
doente no momento, deixando claro que a única coisa que eu conseguiria era
apenas ser fotografado ao lado dela, pois ela não dava entrevistas e lembrou
ainda que Amaury a conhecia há vários anos e mesmo tendo essa amizade e mantendo
contatos com a cangaceira ela nunca cedeu entrevista a Amaury. Eu falei que
entendia a postura e o direito dela manter o silêncio sobre seu passado.
Ciça,
João de Sousa Lima e Dulce
Passei mais alguns dias com Amaury e retornei a Paulo
Afonso, pois as férias estavam acabando e precisava retornar ao trabalho. Na
época eu trabalhava como gerente de abastecimentos de aeronaves no aeroporto
local.
Dulce
com minhas filhas Letícia e Stéfany
Um dos vigilantes do aeroporto chamado Eraldo, sempre
me dizia que sua avó tinha sido cangaceira e como ele era muito
brincalhão eu fui levando a conversa sem dar muita atenção. Certo dia passando
em uma rua tive a atenção despertada por Eraldo que acenou pra que eu parasse
minha moto. Eraldo foi logo dizendo:
- Venha conhecer minha avó que foi do
cangaço!
Estacionei e fui ouvir essa história. Uma simpática
senhora, já passando dos 90 anos de idade, saiu do seu quarto e veio falar
comigo. Eu perguntei se era verdade que ela tinha sido cangaceira e ela
respondeu:
- Não meu filho, isso é conversa do Eraldo,
minha irmã é que foi cangaceira mais ela morreu no cangaço!
- E qual o nome de sua irmã?
- Dulce!
- Dulce? Dulce de Criança?
- Essa mesmo!
- Mais a Dulce tá viva!
- É mentira! Dulce morreu em Angicos!
- Não! Quem morreu em Angicos foi Maria Bonita e
Enedina!
Nesse momento lembrei-me do Acir e contei a história
que tinha conhecido o filho da Dulce, e por mais que eu afirmasse as histórias
sobre a cangaceira, dona Maria “Cícera” dizia não acreditar. Vasculhei em minha
carteira o telefone do Acir e quando encontrei, pedi pra utilizar o telefone
dela pra comprovar o que estava dizendo.
Dulce,
Dil, Maria Ciça e João de Sousa Lima
Liguei e fui atendido de imediato pelo Acir. Quando
falei que era o escritor João de Sousa Lima, o Acir foi muito receptivo e
alegremente comentou, dizendo que tinha lido meu livro e que tinha gostado muito
das histórias. Eu o ouvi atentamente esperando a oportunidade de falar sobre o
real motivo de minha ligação. Quando enfim ele perguntou por que eu estava ligando. Eu disse que estava na casa de uma senhora que afirmava ser irmã de sua mãe
Dulce. Houve um breve silêncio e depois Acir comentou:
- Pelo amor de Deus João, minha mãe procura uma irmã a
mais de 60 anos, me deixa falar com ela pra ver se é ela mesma!
Dulce
com minha família
Passei o telefone para Maria Cícera e fiquei na
expectativa sobre a conclusão da conversa. De repente Cícera chorou, desligou o
telefone, sentou e com um grande sorriso de contentamento falou:
- Minha irmã tá viva!
Cangaceira
Dulce em rara fotografia
Ficamos alguns minutos observando a felicidade daquela
senhora, participando de sua alegria.
Dias depois recebo uma ligação. Dulce estava em Paulo
Afonso e queria me conhecer.
Ela e o filho Acir vieram no voo da BRA, que fazia São
Paulo/ Paulo Afonso duas vezes por semana.
Família
de Dulce em Paulo Afonso
Dia seguinte, dentro do horário marcado, segui até a
casa de Cícera, que morava com sua filha Dil. Quando cheguei, vi várias pessoas
na sala e me aproximei. Apresentei-me, e Dulce, conversamos muitos minutos e
pude observar sua capacidade intelectual, mulher inteligente, com um misto de
dureza na face e ao mesmo tempo de doçura na alma. Tempos depois ela
falou:
Dulce como cangaceira
- Eu tenho uma grande dívida com você. Você me
proporcionou o momento mais feliz de minha vida, tendo encontrado essa minha
irmã. Meu filho aqui presente sabe que não dou entrevista pra homem nenhum, mas
vou abrir uma exceção pra você, pois fiquei sabendo que você escreve livros
sobre o cangaço e precisa saber um pouco de minha passagem por esse momento que
não gosto de falar! Você quer fazer como?
- Quero filmar!
- Quanto tempo?
- Três horas!
- Três horas não, serão duas horas!
- Certo!
- Venha amanhã dez horas da manhã e conversaremos. Só
que você não poderá me fazer duas perguntas que eu sei que você sabe sobre
minha vida, pois se fizer eu encerro a entrevista.
- Uma das coisas eu sei e não te perguntarei. O outro
assunto eu não sei do que se trata, e se por acaso eu te fizer alguma pergunta
sobre isso, a senhora não responde!
- Combinado! Aguardo você amanhã!
Dia seguinte, eu e o pesquisador e cinegrafista
Petrúcio nos dirigimos ao encontro marcado.
Dulce nos recebeu sorridente, conversamos um pouco e
fomos até o muro, lugar onde uma frondosa árvore dava sombra e reinava um
silêncio propício para não atrapalhar a filmagem.
Petrúcio
com Dulce, Dil e Ciça
Petrúcio colocou a filmadora em um tripé, eu me
acomodei entre as duas irmãs, Cícera e Dulce, a entrevista começou. Durante
duas horas as mulheres foram falando do sofrimento. Da dor de Dulce ter deixado
a casa de seus pais, a força, levada por seu cunhado, pra ser trocada por ouro.
O tempo passou rápido. Finalizamos a entrevista e
antes de sairmos, Dulce me agradeceu por aquele momento e disse:
- Você só poderá lançar essa entrevista depois que eu
morrer! Posso confiar?
- Pode!
Dia seguinte, eu com minha família e o amigo-irmão
Edson Barreto fomos visitar Dulce. De lá fomos todos almoçar em um restaurante
no centro da cidade. Conversamos por muito tempo e ali eu pude entender o
porquê do silêncio daquela misteriosa e ao mesmo tempo tão doce mulher. Suas
dores tão profundas de ter enfrentado um mundo tão hostil, sendo ainda
tão criança. Pude compreender sua fé inabalável no Cristo que rege seus passos.
Conheci os caminhos que a fizeram sábia. Entendi que suas feridas cicatrizaram
na compreensão do silêncio que outros não entenderam. Dulce é tão
pura-bela-sábia que é difícil não se emocionar, mesmo ela permanecendo em seu
silêncio.
Quando hoje só resta Dulce nos registros dos
ex-cangaceiros, sendo a última pessoa a vergar sobre seu corpo as vestimentas
do cangaço, eu afirmo que dentre muitas histórias que vivi nesse vasto mundo
cangaceirístico, essa foi uma das histórias que mais marcas deixaram no íntimo
de minha inquieta alma.
Fico feliz de tê-la conhecido e de em certo momento
ter feito parte de sua alegria, mesmo ouvindo e compreendendo suas dores e
tristezas de um passado ainda tão latente, tão presente nos sonhos de uma
criança que correu caatinga à dentro, trocando seus mais puros desejos infantis
pela dura concepção da realidade dura do aço e do ferro em brasa de armas que
embalaram lutas ferrenhas no mais inóspito terreno do nordeste do meu Brasil.
João de Sousa Lima é historiador, escritor. Membro da ALPA - Academia de Letras de Paulo Afonso. Membro do GECC – Grupo de Estudos do Cangaço do Ceará. Membro da IGH- Instituto Geográfico e Histórico de
Paulo Afonso. Membro da SBEC – Sociedade Brasileira de estudos do
cangaço.
Paulo Afonso, 02 de setembro de 2014.
http://www.joaodesousalima.com/
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Enviado pelo autor para postagem neste blog.
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Uma excelente e emocionante história.
ResponderExcluirParabéns ao escritor, pesquisador e historiador João de Sousa Lima.
Pois é caro Mendes, li agora o texto sobre o encontro do João de Sousa com Dona Dulce e é na verdade como você afirma: "excelente e emocionante história".
ResponderExcluirO João - um grande poeta que o é - a senhora Dulce com as cicatrizes do cangaço, não poderia deixar de ser uma entrevista emocionante. PARABÉNS PARA O JOÃO POR ESSES GRANDES ENCONTROS e MUITA SAÚDE E LONGANIMIDADE PARA DONA DULCE, e ficamos gratos por haver concedido a entrevista ao nosso QUASE conterrâneo João de Sousa Lima.
Abraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Bahia.
Caro Mendes, peço desculpas a você e aos leitores do blogmendesemendes, por haver falhado no meu comentário acima. Em vez de LONGEVIDADE, empreguei a palavra LONGANIMIDADE.
ResponderExcluirAntonio Oliveira - Serrinha