Publicado em: Tok de História por Rostand Medeiros em 20-11-2014
Versão dos
vencedores não dá conta da organização política de uma sociedade que se manteve
por mais de meio século.
Laura Perazza
Mendes Nascimento
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-que-houve-em-palmares
Corria pelos
engenhos e senzalas da capitania de Pernambuco a notícia de que, para o lado
das serras, na região dos palmares, havia um refúgio. Um lugar onde era
possível viver fora do poder dos senhores de engenho e manter vivas tradições
africanas recriadas na América. Lá, uma nova sociedade era construída:
guerreiros, agricultores, comandantes de guerra, líderes religiosos e uma
linhagem real que determinava os rumos políticos e militares.
Aquelas
povoações foram chamadas de mocambos, acampamentos que poderiam ser desmontados
e montados em outras regiões, como estratégia de fuga ou de busca por melhores
terrenos. Chegar a essa zona de vegetação de palmares não era tarefa fácil.
Após fugir dos engenhos ou das vilas, era necessário trilhar caminhos íngremes
e fechados pela mata. Qualquer descuido poderia resultar em recaptura ou morte,
pois havia pessoas dedicadas especialmente à perseguição de escravos fugitivos,
como os capitães do mato. Mesmo assim, muitos conseguiram chegar ao local,
incluindo índios e pessoas livres. Foi mais fácil fugir para os mocambos no
início do século XVII, quando a produção de açúcar foi desorganizada pela
invasão dos holandeses (1630) e, mais tarde, pelas batalhas de expulsão desses
estrangeiros (1645-1654).
Panorâmica do
Parque Memorial do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, que desde 2007
reconstitui o cenário do antigo Quilombo.
Como era feito
em Angola, os habitantes extraíam dos palmares a vegetação que deu o nome para
os mocambos, fibras e palmito, além de produzir vinho e óleo. Não viviam
isolados da sociedade colonial, mas buscavam reagir ao escravismo governando a
si próprios.
Mas quem
contou a história dessa sociedade? Infelizmente, não há nenhum registro escrito
por habitantes dos Palmares. O que chegou até nós foram documentos produzidos
por representantes da Coroa portuguesa que governaram a capitania de Pernambuco,
e relatos de pessoas que lutaram contra os negros dos mocambos durante o século
XVII. Por causa disso e de uma interpretação preconceituosa dos primeiros
historiadores de Palmares, a sua história foi contada do ponto de vista da
destruição. Era a versão dos vencedores.
O principal
meio tentado pelos governadores de Pernambuco e pela Coroa portuguesa para pôr
um fim em Palmares foi enviar expedições militares. Elas deveriam encontrar o
caminho dos mocambos e fazer o máximo de prisioneiros possível. Os prisioneiros
seriam devolvidos a seus antigos senhores ou vendidos para fora da capitania,
para que não retornassem aos mocambos. Poderiam render um bom lucro, mas
durante os confrontos muitos morriam ou ficavam feridos. Como meio de se defender
dos ataques, os habitantes de Palmares faziam emboscadas e levantavam
acampamento, mudando os mocambos de local.
Um dos
primeiros estudiosos do assunto, o escritor Raimundo Nina Rodrigues
(1862-1906), dividiu a história de Palmares em três fases. A primeira
corresponde ao período da invasão holandesa, no qual o número de habitantes dos
mocambos cresceu rapidamente. Seu marco seria o ano de 1644, data do confronto
entre os negros amocambados e a expedição comandada por um holandês chamado
Rodolfo Baro. O próximo marco escolhido por Nina Rodrigues foi uma expedição
militar comandada pelo capitão Fernão Carrilho, em 1677. Vindo de Sergipe
especialmente para fazer uma guerra contra Palmares, o militar promoveu um
grande ataque. Segundo relatos posteriores, 200 habitantes de Palmares foram
feitos prisioneiros, incluindo a rainha e filhos do rei, chamado Gana Zumba.
Muitos morreram ou ficaram feridos, mas sobre estes não há números. Importava
mais aos vencedores contar aqueles que poderiam ser vendidos. A fase final de
Palmares foi a da morte do líder Zumbi, em 1695, seguida pela destruição dos
mocambos remanescentes. Mas o salto na história promovido por Nina Rodrigues
não dá conta de explicar a mudança da liderança do rei Gana Zumba para Zumbi.
Muitas coisas acontecerem nesse meio-tempo: acordos de paz, mudanças nas
localizações dos mocambos, diferentes posicionamentos políticos.
Como a maioria
decidiu contar essa história a partir da destruição, o foco escolhido foi a
morte de seu líder mais famoso. No final do século XVII, o governo de
Pernambuco, cansado das expedições militares que fracassavam na luta contra os
mocambos, decidiu investir no contrato de um tipo diferente de tropa: as
bandeiras paulistas. Liderados por Domingos Jorge Velho, os indígenas e
descentes de europeus que compunham essa tropa assinaram um contrato se
comprometendo a destruir os mocambos de Palmares. Em troca, receberiam
prisioneiros, terras e benefícios da Coroa, chamados de mercês.
Em 1694, os
homens de Jorge Velho atacaram o mocambo principal de Palmares, localizado no
Outeiro do Barriga, juntamente com homens da capitania de Pernambuco. Lá
estavam Zumbi e seu exército, na capital conhecida como Macaco, protegidos por
uma cerca alta que rodeava o local, à espera do ataque. Para rompê-la, os
paulistas decidiram subir até o local carregando dois pesados canhões. Após
horas de combate entre os que estavam do lado de fora e do lado de dentro da
cerca, as tropas a serviço da Coroa conseguiram entrar em Macaco. Seu principal
objetivo era capturar ou matar Zumbi, para provar que Palmares havia sido
derrotado. Mas não o encontraram. Estaria ele morto? Teria escapado?
Os primeiros
historiadores de Palmares acreditaram na versão de que Zumbi havia se suicidado
pulando de um penhasco. Teria preferido morrer assim a ser capturado ou morto
pelos inimigos. Posteriormente, foram encontrados documentos que relatam a
morte de Zumbi um ano depois.
Inconformado
por não poder atestar a morte de Zumbi à Coroa e a todos que viviam em
Pernambuco, o governador da capitania, Caetano de Melo e Castro, decidiu enviar
mais uma tropa aos mocambos. Em 1695, um habitante de Palmares que havia sido
capturado anteriormente foi coagido a ajudar os homens a serviço da Coroa, e
informou onde Zumbi estava escondido. Em uma emboscada, o líder palmarino foi
capturado e morto. Sua cabeça foi exposta em Recife, para que todos soubessem –
principalmente os escravos – que o refúgio de Palmares estava definitivamente
destruído.
Quase todos os
historiadores posteriores adotaram esses marcos cronológicos, mas quantos
outros episódios importantes ficaram de fora da história contada pelos
vencedores? Em 1678, após a expedição comandada por Fernão Carrilho, Gana Zumba
decidiu enviar representantes seus para negociar um tratado de paz com o
governo de Pernambuco. Sua embaixada era formada por 11 pessoas, entre elas
seus filhos e importantes líderes militares. Em Recife, a comitiva de Gana
Zumba foi recebida com a pompa e a circunstância dignas de uma negociação entre
chefes de Estado. Cartas e presentes foram trocados entre os governantes de
Palmares e de Pernambuco.
Gana Zumba
aguardou em Palmares os resultados das negociações. O governador de Pernambuco
desejava que os mocambos fossem esvaziados e os escravos que lá viviam fossem
devolvidos a seus senhores. Já Gana Zumba esperava que os palmarinos pudessem
escolher um novo local para viver e que os nascidos nos mocambos fossem
considerados livres.
As condições
foram acertadas entre as partes, e os habitantes de Palmares, liderados por
Gana Zumba, mudaram-se para um local chamado Cucaú. Porém uma parte dos
palmarinos foi contra o acordo. Liderados por Zumbi, decidiram permanecer nos
antigos mocambos e resistir aos ataques das novas expedições. Outras tentativas
de acordo de paz foram feitas com Zumbi, mas nenhuma obteve sucesso. Algum
tempo depois da mudança para Cucaú, Gana Zumba morreu, provavelmente
assassinado por seus opositores políticos. A nova povoação foi então desfeita.
Alguns retornaram a Palmares e outros foram feitos escravos pelos senhores
locais, sendo vendidos para fora de Pernambuco.
O acordo feito
em 1678 comprova que os habitantes de Palmares estavam organizados
politicamente e que seu governo, com base em conhecimentos acumulados na África
e na América, soube conduzir uma negociação com os representantes da Coroa
portuguesa. A destruição de Palmares apaga uma história de mais de meio século
de organização social e resistência política.
Laura Perazza
Mendes Nascimentoé autora da dissertação “O serviço de armas nas guerras contra
Palmares: expedições, soldados e mercês” (Unicamp, 2013).
SAIBA MAIS
GOMES, Flávio
dos Santos. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo:
Contexto, 2005.
GOMES, Flávio
dos Santos Gomes (org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos
XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.
Extraído do blog Tok de História do escritor e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
http://tokdehistoria.com.br/2014/11/20/o-que-houve-em-palmares/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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