Por: Sofia Moutinho
Capa do livro de Frederico Pernambucano mostra Benjamin Abrahão e padre Cícero. (foto: reprodução).
Livro resgata
a saga do sírio-libanês Benjamin Abrahão, que imigrou para o Nordeste
brasileiro na década de 1910 e entrou para a história por se tornar braço
direito do padre Cícero e ter sido o único a filmar Lampião e seu bando.
O aventureiro
sírio-libanês Benjamin Abrahão exibe o equipamento da Aba Filmes ao lado de
Lampião, Maria Bonita e o restante do bando. (foto: Cinemateca Brasileira)
Deus e o diabo
na terra do sol. Impossível não lembrar do título do filme de Glauber Rocha ao
ouvir a história do sírio-libanês Benjamim Abrahão, curiosa figura que fez sua
vida no sertão nordestino nos anos 1920 e 1930. O forasteiro conseguiu seu
sustento se aproveitando ora do homem santo padre Cícero, ora do vilão Lampião.
Nessa empreitada, ficou marcado na história como o primeiro a documentar de
perto a vida do cangaço, através de fotos e filmes.
Sua rica
biografia é narrada pelo historiador Frederico Pernambucano em Benjamin Abrahão, entre anjos e cangaceiros, livro repleto
de detalhes suculentos sobre a vida no sertão e que não deixa de fora
importantes marcos da política e da história da época.
Parte da
história de Benjamin Abrahão já havia sido contada no filme Baile
perfumado (1997), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. A essa época,
Pernambucano já estudava a saga do sírio-libanês e foi ele quem sugeriu o tema
para os cineastas. Passados quase 20 anos, o historiador nos revela, em mais
detalhes, um Benjamin Abrahão oportunista, que soube aproveitar cada chance
oferecida no Brasil.
Logo que
chegou ao país, em 1915, fugido do alistamento militar para a Primeira Guerra
Mundial, Abrahão usou da sua estrangeirice para conquistar a confiança de padre
Cícero, então um poderoso e influente líder religioso e político de Juazeiro,
interior do Ceará. Em meio à multidão de fiéis que visitavam o ‘padim’, o sírio
se destacou apresentando-se como conterrâneo de Jesus. Tornou-se secretário
pessoal de Cícero.
“Benjamin era
um espertalhão, tão sedutor que conseguiu se instalar na casa paroquial, na
época uma sede de poder importante. Lá vivia o padre Cícero e seu braço
político Bartolomeu Floro. Benjamin se tornou o braço pessoal do padre”, conta
Pernambucano. “Ficaram o padre e os dois como se fossem seus ministros.”
O
sírio-libanês ficou na paróquia de 1917 a 1926. Nesse período, responsável
pelas muitas joias doadas por fiéis, desviou fundos para si mesmo. Circulava no
luxo e na luxúria até que a morte do padre pôs fim a sua boa vida.
Pernambucano
nos conta que em uma última tentativa de lucrar em cima do beato, Abrahão
cortou chumaços de cabelo de Cícero já morto e passou a vendê-los para os
romeiros. O empreendimento deu lucro até que o povo começou a desconfiar que o
religioso não tinha tanto cabelo quanto estava sendo vendido.
O cangaço
filmado
Sem dinheiro e
desrespeitado, Benjamin Abrahão partiu para uma nova aventura. Com a chancela
de ter sido braço direito de padre Cícero, foi em busca do temido Virgulino
Ferreira, o Lampião. Devoto conhecido do ‘padim’, o cangaceiro estava em seu
auge, controlando vários bandos pelo Nordeste, quando Abrahão lhe propôs ser
seu documentarista oficial. Os dois já haviam se encontrado quando o cangaceiro
foi convencido por padre Cícero a lutar ao lado do governo contra a Coluna
Prestes, que passou pelo Nordeste por volta de 1925.
Abrahão já
tinha tudo preparado. Conseguiu apoio da agência alemã Aba Filmes para filmar o
cangaceiro procurado pela Justiça com uma câmera sem som de alta tecnologia
para a época. Lampião, fascinado com a modernidade dos apetrechos, aceitou a
proposta. Antes, porém, testou o equipamento para garantir que não se tratava
de uma arma disfarçada.
Pernambucano:
“Lampião viu na proposta de filmagem a oportunidade de ingressar na
história pela forma mais moderna que havia então”.
“Benjamim
conseguiu convencer Lampião por causa do efeito mágico do cinema”, diz
Pernambucano. “Naquela época, Lampião mobilizava grossos capitais. Travava com
coronéis da região que financiavam seus roubos e recebiam parte do lucro. Seu
bando era a imagem do sucesso da organização fora da lei. Ele viu na proposta
de filmagem a oportunidade de ingressar na história pela forma mais moderna que
havia então.”
A aventura
cinematográfica de Benjamim Abrahão ganhou as páginas dos principais jornais do
país. Em fevereiro de 1937, ele publicou uma série de reportagens no Diário
de Pernambuco exibindo a intimidade do cangaço.
Havia fotos
impensáveis de Lampião costurando, Maria bonita penteando-lhe os cabelos,
cangaceiros tocando gaita e comendo. O sírio-libanês anunciava para a imprensa
que em breve lançaria um documentário sobre Lampião e seu bando.
A ideia dele
era exibir o filme no Brasil e vender cópias para o exterior, onde Lampião
também era manchete. Mas seu sonho foi destruído pela então recém-instalada
ditadura do Estado Novo, que mandou confiscar as filmagens e proibiu a exibição
e comercialização das películas.
“As fotos e
filmes de Benjamim eram um atestado da incompetência das forças policiais e uma
afronta ao Palácio do Catete”, comenta o historiador, que traduziu a caderneta
em que o forasteiro sírio registrou denúncias sobre as forças policiais que
matavam civis e colocavam a culpa nos cangaceiros.
Assista a
trechos do filme de Benjamin Abrahão sobre o bando de Lampião
Nessa época, sequências inteiras dos filmes foram destruídas. O que restou foi
recuperado na década de 1950 pela Fundação Getúlio Vargas. Entre os filmes
remanescentes, um chama atenção. Mostra o rei do cangaço fazendo comercial de
Cafiaspirina, remédio para dor de cabeça da empresa alemã Bayer. O cangaceiro
aparece distribuindo o remédio para seu bando em frente a um cartaz que diz:
“Se é Bayer, é bom”.
Fadados à
morte
Benjamin
Abrahão morreu em circunstâncias misteriosas sem conseguir lucrar com seus filmes.
Saiu para beber cerveja quando faltou luz na vila em que estava. Ouviram-se
gritos e seu corpo foi encontrado esfaqueado dentro da casa de um homem
aleijado que confessou o crime.
Ninguém sabe
quem foi o real autor do assassinato. Segundo Pernambucano, provavelmente foi
alguém do povo contratado por algum coronel que queria queimar o ‘arquivo vivo’
que era Abrahão. Tendo convivido com Lampião, ele conhecia todos os coronéis e
policiais corruptos que ajudavam o cangaceiro.
Pernambucano:
“Quem matou Benjamin foi a mesma força que matou Lampião: o Palácio do Catete e
os valores da ditadura”.
Mas, para o
historiador, em última instância, quem matou o sírio-libanês e também Lampião
foi o Estado Novo. O fim da soberania dos estados imposta pelo novo regime nacionalista
desmantelou a estratégia de ocupação do cangaço, que se mantinha nas fronteiras
para escapar das forças policiais que não tinham domínio para além de seus
territórios.
Outro elemento
apontado por Pernambucano foi o fim da inviolabilidade do latifúndio, que fez
com que os coronéis que abrigavam bandos de cangaceiros não pudessem mais
impedir a entrada de policiais em suas terras.
“Quem matou
Benjamin foi a mesma força que matou Lampião: o Palácio do Catete e os valores
da ditadura”, afirma o historiador. “Antes que o Estado Novo espatifasse o
sistema de poder do sertão, era alto negócio para qualquer fazendeiro
comercializar com o cangaceiro. O Estado Novo acabou com esse colaboracionismo.
A morte de Benjamin foi, sobretudo, uma queima de arquivo histórica.”
Aproximação
suspeita
A história de Benjamim, na biografia de Frederico Pernambucano, tem como pano de fundo a relação da Alemanha com o Brasil antes da Segunda Guerra Mundial. O patrocínio da Bayer e da Aba Filmes à empreitada de Abrahão não foi gratuito. O historiador acredita que o apoio alemão é indício da política de aproximação do Reich com o nosso país.
“Lampião foi garoto propaganda da Bayer e isso se encaixa dentro de um quadro geral de sedução da Alemanha em direção ao Brasil”, diz. “Para se ter ideia, Hugo Sorentino, italiano que fazia filmes no Brasil, foi convidado a dirigir a Universo Filmes, agência alemã criada aqui para difundir o cinema alemão e furar o bloqueio de Hollywood. Ele chegou a ser convidado por Goebbels [ministro de propaganda de Adolf Hitler] a ir para Alemanha e ouviu dele que tinha interesse em moldar o cinema alemão para ser atraente para o brasileiro. Havia um namoro entre Alemanha e Brasil. A Alemanha sonhava com certas matérias-primas brasileiras, algumas estratégicas como o urânio.”
Pernambucano diz que os interesses da Bayer no Brasil não são completamente esclarecidos por falta de documentos históricos.
Quando o Brasil declarou
guerra aos países do Eixo, em 1942, a Bayer sofreu intervenção federal e muitos
arquivos foram destruídos. Mas o historiador acredita que a figura de Lampião
era estratégica para a entrada da empresa no sertão. “Aproveitar uma figura de
herói popular, no sentido grego da palavra, que é um sujeito capaz de grandes
façanhas para o bem e para o mal, era a intenção”, diz. “Lampião era cruel,
perverso, atacava vilarejos, mas fascina o povo até hoje.”
http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/sobrecultura/2013/05/entre-deus-e-o-diabo-1/
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