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quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

SERTÃO, LUA E CANDEEIRO

Por Rangel Alves da Costa*

Em muitos lugares os postes de luz elétrica ainda não chegaram. Em muitas distâncias interioranas, a vida continua com a mesma feição de cem anos atrás. Não há fogão a gás, geladeira, televisão, bico de luz, inovação tecnológica alguma. Celular é bicho desconhecido, coisa digital é alma do outro mundo.

Por lá ainda se avista o pote na trempe, o fogão de chão, o feixe de lenha pelos cantos da cerca, a moringa de barro cozido, a caneca de alumínio, o prato de estanho, o aió pendurado no armador de rede, o embornal e o caçuá, o facão e a enxada, a espingarda de caça perto da cumeeira, o cantil de couro cru e a cumbuca vazia.

E também um velho pilão no quintal, um gibão carcomido de mato e suor, estribo e arreio, chicote sebento de tempo, esteira de se espalhar pelo chão, tamborete de três pernas, banco de varanda que cupim não rói, um oratório passado de geração a geração, um santo de madeira que ninguém sabe mais o nome. E ainda a lamparina, o candeeiro, o alguidar, a bacia de lavar mão, o radinho de pilha.

Um sertão assim ainda existe. Ainda existe um sertão onde na escuridão só se avista uma luz fraca e amarelada após a porta. Um sinal de vida no meio do desolado mundo. É a luz fraquejante do candeeiro, no seu bailado manso de sopro de vento, permitindo divisar o casebre em meio ao breu sertanejo. Mesmo a porta entreaberta, é o candeeiro ainda aceso que testemunha a presença de vida. Até mesmo pelas frestas do barro se avista o vaga-lume de lata e pavio.

Dizem que nos tempos da escuridão total, quando somente os vaga-lumes, a mula-sem-cabeça e outras aparições chispando fogo pelas ventas, vagueavam iluminando aquele mundo hostil, a lua, mesmo cheia e fulgurante, evitava descer por ali. E assim fazia para que as noites sertanejas não perdessem seus mistérios e sua magia. E então, aquele mundo de breu se fazia chamejante sem candeeiro aceso. Até que alguém fincou moradia e dividiu com os seres da noite a faísca de luz. Então a lua cortou o seu véu e por isso mesmo brilha tão majestosa e mais bela que em qualquer outro lugar.


Dois candeeiros acesos, quando muito. Um na sala outro na cozinha. Mas nem sempre assim, pois em muitas moradias, naquelas que quando se entra pela porta da frente já se vista a porta de trás, basta um aceso para tudo ficar iluminado. E de sobre. Não há vão escurecido, praticamente não há quarto nem portas e divisórias separando espaços, apenas as quatro paredes de barro e cipó e alguns arranjos por dentro.

Mas também moradias com varanda, sala, quarto e cozinha. Ainda assim nem sempre mais de dois candeeiros são acesos após a noite abrir sua boca sombreada. Quando a luminária matuta é colocada num lugar mais alto no meio da casa, então a luz se espalha de modo suficiente por quase todas as dependências. Também uma questão de gastar menos gás e pavio. Ademais, até mesmo na escuridão é possível encontrar o que resta esquecido desde muito.

O senso de percepção é sempre mais forte que qualquer luz. O sertanejo sempre sabe onde deixou seu cachimbo, sua palha de milho, sua agulha, seu frasco de xarope de tacho. Daí não precisar de luz acesa para colocar a mão no que desejar. Contam até que a Velha Purcina colocava linha na agulha, costurava e pregava botão, sem ter qualquer claridade por perto. E não errava uma linha nem pinicava um dedo. Também debulhava feijão sem que um só grão caísse fora da bacia. Mas vivia se batendo pelos cantos diante do candeeiro.

Floriano só permitia candeeiro aceso até encerrar o café, quando tinha. Como gostava de farinha seca com pedaço de preá assado na brasa, precisava enxergar a comida para não perder o prumo no arremesso da farinha. Assim mesmo, pois apanhava um punhado de farinha e arremessava na boca. Não errava uma. Em seguida mordia um pedaço do assado e derramava café por cima. Daí a necessidade da luz de candeeiro por perto.

Mas após o café e o prato lavado, pedia à mulher que apertasse o pavio com os dedos da mão. Era sinal para que tudo voltasse à escuridão. A mulher até gostava que fosse assim. Estava acostumada com a noite, com o breu, com a aquela cor misteriosa e encantadora. E também porque a casa ficava mais refrescada e chamativa para a chegada do sono. Contudo, principalmente pela outra luz que logo iam atrás. A luz da lua sertaneja.

Do lado de fora da casa o encontro com a luz maior. A lua grande, cheia, transbordando luz, descendo toda sua força naquele mundo com pouca riqueza a iluminar. A meninada correndo pela malhada como se fosse dia, a mulher ecoando a velha canção de reisado enquanto penteia os cabelos: “Oi de casa oi de fora, Maria vá ver quem é. Somos cantador de Reis, quem mandou foi São José...”. E o homem olhando para o alto, lendo na linha do horizonte o destino de todos: “Amanhã vai chover. Amanhã vai chover...”.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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