Por Rangel Alves
da Costa*
De vez em
quando é bom matar a saudade. Como dizia o mestre ao pé da montanha: Eis-me
aqui na recordação do quanto lá de cima pude avistar a mundo. Mas não preciso
mais subir novamente para tudo enxergar. O quanto já avistei é suficiente para
fazer da saudade o que adiante preciso ter sem necessidade de retornar e
caminhar pelos mesmos caminhos do passado.
Depois seguiu
adiante sem olhar para trás, para o alto da montanha. Estava cheio de saudade,
mas com toda recordação que precisava guardada no alforje da memória. Toda vez
que precisasse relembrar era só chamar ao pensamento o que desejasse. E assim
ocorre com muita gente que faz da saudade uma forma de não perder ou se
distanciar demais daquilo que lhe foi tão importante na vida. Enquanto uns tudo
fazem para apagar o passado, outros cuidam de mantê-lo como chama viva.
Tia Zulmira
tinha um jeito estranho de sentir saudade. Quem a conhecia apenas ficava
imaginando porque agia daquele modo, mas quem não fosse do seio familiar
certamente imaginava seu pouco juízo pela idade. Mas a verdade é que ela tinha
hora certa para sentir saudade. Não só para a nostalgia de todo dia, sempre ao
entardecer, mas também para conversar sozinha (sempre afirmava dialogar com
pessoas) e chorar feito um rio cheio.
Todo
entardecer e a Tia Zulmira mandava um neto colocar sua cadeira de balanço
debaixo do sombreado de uma mangueira. Acaso o menino se demorasse, logo ela
gritava que já estava na hora de sentir sua saudade, de chorar e sorrir
relembrando o passado e também de conversar com aqueles que foram tão
importantes na sua vida. E se o menino se demorasse ainda mais então ela
gritava a todo pulmão: Menino de Deus, num tá vendo que a saudade tá me
matando?!
Depois que a
cadeira era devidamente colocada debaixo do sombreado, então ela seguia levando
um lenço e uma velha caixinha de madeira. Ao sentar, mirava o horizonte acima
do varal e assim permanecia por muito tempo. Só se mexia quando levava o lenço
ao canto do olho para enxugar a primeira lágrima. Daí em diante era um chorar de
não acabar mais. E também um converseiro danado: Ainda hoje me recordo quando a
senhora escondeu minha boneca de pano. Chorei três dias sem parar e a senhora
nem aí. Mas hoje reconheço sua razão. Eu queria ser menina demais e sem pensar
em crescer.
De vez em
quando abria a caixinha de madeira e fazia surgir uma carta amarelada, um
pingente antigo, um retrato em preto e branco, um velho rosário de contas
brilhosas e bonitas. Levava as antiguidades até diante do olhar e depois as
apertava entre as mãos. Em instantes assim, principalmente quando juntava tudo
pertinho do coração, então seus olhos se fechavam e os lábios enrugados
chegavam a estremecer. A dor da saudade ali manifesta na boca trêmula e nas
lágrimas que irrompiam entre os cílios e escorriam pela pele enrugada.
Morreu assim,
numa tarde quase noite de saudade maior. No dia anterior já parecia se
despedir. Seu neto, que brincava de ponta de vaca logo atrás, a tudo ouviu mas
fez de conta que era mais uma daquelas conversas sem pé nem cabeça. Mas conversando
com os seus fiéis visitantes nas horas saudosas, ela afirmou: Meu tempo aqui já
chegou ao fim e amanhã partirei. Tia Cotinha vai fazer um doce de leite e mamãe
um bordado bem bonito pra minha chegada. Não sei como é sentir saudade por aí
nem se tem uma mangueira dessas com cadeira de balanço, mas sei que vou sentir
muita saudade desse meu netinho que toda tarde me ajuda a reviver o passado.
Hoje quem
sente saudade da Tia Zulmira é o neto. Saudade, aliás, que por várias razões e
motivos se espalha por todo lugar. Os adeuses forçosamente dados, os retratos
nas paredes, as palavras ditas ou ouvidas um dia, os encontros e permanências
do passado, os amores vividos e distanciados, os baús sempre repletos de
alegrias e sofrimentos, as pequenas coisas que tanto lembram instantes
importantes na vida, tudo vai se transformando em saudade, e muitas vezes em
saudade sem fim. Como a daquela mocinha que abre a janela para reencontrar seu
amor distante numa folha ao vento ou num pássaro que voa.
Não só Tia
Zulmira, pois muita gente busca a ambientação ideal para sentir saudade. O
quarto escurecido, a chuva caindo, o vento soprando, as cores do sol poente, o
brilho romântico da lua, a flor ao desalento de um canteiro, uma vela acesa ou
uma velha canção, tudo chama a saudade. E quando ela chega sempre traz numa mão
um lindo buquê e no outro um lenço enxuto. Tudo entrega ao instante de solidão
e depois retorna deixando para trás a dolorosa missão de não esquecê-la. Daí
sua eternidade em quem tem razão em senti-la.
Como disse o
lacrimoso ante a janela aberta, quanto mais se deseja esquecer mais a saudade
faz recordar. Aqueles que amamos e que se foram continuam presentes no coração.
E este expressa na saudade todo o amor sentido. E este sempre nos faz relembrar
aquilo que somos perante o ausente que também nos amou.
Poeta e
cronista
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