*Rangel Alves
da Costa
Todo santo
dia, logo cedinho, ela passava entoando a velha canção: Lá vai eu de novo, lá
vai eu de novo, levando na cabeça trouxa de roupa do povo. Mas que roupa mais
suja, que roupa encardida, não tem sabão que chegue pra essa coisa fedida. E
sem jeito a dar, lá vai eu de novo, levando na cabeça a imundície do povo...
Já outra, com
medo de perder clientela pela cantiga desaforada, cantarolava baixinho: Caminho
que me leva à beira do rio, nessa mesma estrada o mesmo desafio. Molhar,
ensaboar, esfregar, sacolejar, depois a roupa estender e logo secar. Caminho
que me leva à beira do rio, nessa mesma estrada choro e não sorrio...
As lavadeiras
seguiam assim, cantando, mas depois o canto era outro, cheio de saudosa
plangência, emotivo demais e até lacrimoso. No bate-bate, no enxagua-enxagua,
iam surgindo dolências de entristecer coração. E pelas beiradas e além a voz
bonita: Minha mãe partiu e eu fiquei aqui, e minha filha sabe que um dia hei de
ir. Enquanto não vou, a roupa eu lavo, assim lavo a alma desse viver escravo.
Do tempo e de tudo, que viver mais escravo...
Silenciosas
para o instante, de cabeças baixas, sentindo por dentro, as demais se afligiam.
Depois também cantavam e em cada canção a poesia sofrida, desiludida, cheia de
tormentos. Assim todo dia de difícil labuta. Ofício que sempre começava na
noite anterior, quando iam de casa em casa recolhendo as roupas, se estendendo
pela maior parte da manhã, até o retorno da beirada do riacho já com os panos
lavados e arrumados em trouxas.
Aquilo que
comumente chamavam de rio e para onde se dirigiam a cada manhã, não passava de
um riacho cujas águas dependiam sempre das chuvas na nascente, ou cabeceiras,
como preferiam chamar. Quanto mais chuvas mais enchentes, mais águas muitas,
mais facilidades de lavar as roupas nas correntezas que se formavam. Mas quando
as chuvas escasseava, então se valiam das águas represadas para o molhar,
esfregar, ensaboar, dar a limpeza final. Em situações assim, um sacrifício
ainda maior.
Leito de
riacho entremeado de pedras grandes, pontudas, lisas, traiçoeiras, onde se
formavam os poços fundos. Nas épocas de cheias, adultos e crianças se lançavam
de suas alturas para mergulhar sem medo dos perigos lá debaixo, pois sempre
existindo outras pedras miúdas e perigosas nas águas rasas. Muitas eram as
vezes que as lavadeiras tinham de gritar para que não espanassem aguaceiro por
cima dos panos já estendidos nas pedras.
As pedras das
lavadeiras já haviam sido escolhidas de muitas outras gerações. As que agora
utilizavam já vinham sendo usadas por suas mães, avôs, bisavós, numa linhagem
de mesma luta debaixo do sol ou da chuva. Sim, pois se lavava até quando
chovia, depois levando as roupas para serem colocadas nos varais estendidos nos
quintais e arredores. Estendidas ficavam ao sabor do tempo, da ventania ou de
quando o sol novamente despontasse.
As pedras já
demarcadas pelos antepassados possuíam toda uma feição especial, além de uma
simbologia que muitas das mais jovens sequer chegavam a compreender. Diziam os
mais velhos que sobre aquelas pedras, entre a beirada e o leito do riacho,
muitos já se ajoelharam rogando por chuva ante a secura do leito. E também que
muita moça solteira abriu os braços em noite de lua grande para implorar
casamento, prometendo até o impossível de realizar. E o mais instigante: no
meio da noite, uma mulher descia da lua vestida de sol, tendo às mãos a flor e
o espinho, e em cima da pedra permanecia mirando aqueles horizontes
escurecidos, mas tão visíveis aos seus olhos doces. Logo disseram ser a visita,
em pessoa de luz, da padroeira da luta e da esperança: Nossa Senhora Sertaneja.
Por isso mesmo
que aquelas pedras iam muito além de simples locais onde as roupas eram
lavadas, pois simbolizando outras presenças antigas e ainda tão acreditadas
pelos mais novos. Daí que aquelas mulheres se ajoelhavam e a reverenciavam
quando chegavam e quando partiam, e alguma ou outra não se esquecia de deixar
um raminho de flor de catingueira por cima de sua tez molhada. E a flor,
misteriosamente, sem que ninguém jamais pudesse avistar como acontecia,
simplesmente iam sumindo nas entranhas da pedra. No seu lugar, formava-se uma
pocinha de água a mais cheirosa do mundo. Um perfume santo na aridez sertaneja.
Hoje as
lavadeiras ainda possuem caminho, mas não na quantidade de antigamente. As
roupas sujas são lavadas em casa, na mais pura expressão da palavra. As
máquinas de lavar, as pias e outras locais de lavagem, certamente afastaram os
ofícios daquelas mulheres. Mas as pedras continuam por lá, com menos água pelos
arredores, mas ainda continuam por lá. E os cantos também. Não é raro se ouvir,
mesmo sem qualquer presença de lavadeira, cantigas de um tempo muito distante.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário