*Rangel Alves
da Costa
Num tempo não
muito distante, quando as matas já não escondiam dentro de si muitas espécies
de animais e cada vez mais os que restavam eram ameaçados pelo progresso, pela
exploração desenfreada, pela captura de aves e bichos em extinção para o
comércio clandestino, aconteceu um fato deveras impressionante.
Eis que num
sertão longínquo, mas nem por isso com a mataria menos afetada do que em outras
regiões, vivia um povo empobrecido que tinha na caça e na pesca fontes
essenciais de sobrevivência. Plantavam quando podiam, colhiam quando a chuva
fazia brotar e verdejar, se alimentavam quando a safra permitia.
Contudo,
muitas vezes não nascia nenhuma planta no chão, faltava o alimento, o de comer.
Sem o milho, o feijão, a abóbora, a melancia, a fava, o feijão de corda, o
maxixe e o quiabo não havia como alimentar a família numerosa. E quando isso
acontecia – e fato muito frequente de acontecer – o sertanejo não encontrava
outra saída senão se embrenhar nas veredas em busca de beira de rio ou nas
matas em busca de caça.
Mas rio era
muito longe, e agora quase sem peixe diante de tantas represas que foram sendo
construídas por todo o leito. Já a mata ficava adiante e além, porém também com
um problema já conhecido e constantemente debatido por todos: quase não havia
mais caça. Acabou a cotia, a nambu, a seriema, a codorna, o veado, o caititu, a
galinha d’água, o camaleão, a lebre, tudo.
Coisa difícil
de resolver. O problema é que não havia saída, pois ou ia caçar ou os
barrigudinhos se danavam a chorar e até corriam o risco de adormecer de barriga
vazia. Se adormecessem! Então juntou a espingarda, o cantil, o embornal e se
danou por dentro da mataria já rala, espessa, empobrecida e feia. Dificilmente
bicho achava lugar pra se esconder nela.
Andou de um
lado a outro, léguas e léguas, cansou e não achou nem sombra de caça. Sentou
numa pedra entristecido por que voltaria sem levar nada pra matar a fome dos
meninos. Mas de repente ouviu um farfalhar ao redor e o barulhar de alguma
coisa que logo imaginou ser uma caça. Levantou rapidamente, preparou a arma e
assim que ia disparar em direção à moita ouviu uma voz:
“Calma, por
que tanta pressa em matar? Sou eu, a cotia, talvez a última, mas ainda estou
por aqui e à mercê da sanha assassinada do caçador. Talvez não queira lembrar,
mas você mesmo e outros amigos mataram os meus pais, os meus irmãos, os meus
primos. E antes disso outros já haviam acabado com meus avôs e toda a linhagem.
Restei para sofrer de saudade e esperar que esse momento chegasse. Eu sabia que
mais cedo ou mais tarde essa hora chegaria, pois quase não existe mais nada
aqui e vocês continuam exterminando...”.
E o caçador,
baixando a arma por um instante, e como se realmente falasse com gente,
afirmou: “Mas é que lá em casa não tem de comer nenhum, não tem um só grão na
panela nem um taco de pão por cima da mesa e os meus meninos estão de barriga
vazia. Sei que a mata tá difícil de caça mesmo, mas num tive jeito senão vim
tentar derrubar qualquer bicho que sirva pra assar ou cozinhar...”.
“Mas que
situação a de nós todos, amigo caçador. Olhe ao redor e veja essa mata
esturricada de seca, os barreiros todos sem um pingo d’água, nada pra matar a
sede nem alimentar. Igualmente à sua família, principalmente seus filhos, eu
também estou com fome e sede. Seus filhos ainda têm um pai que se preocupa com
eles. E eu, que nem família tenho por causa de vocês? Mas como eu já vivi muito
e os seus filhinhos ainda são pequeninos, então não vou achar ruim se apontar
essa arma e atirar. Vou me aproximar mais pra você não errar o disparo. Tá
certo?”.
E então a
cotia saiu detrás da moita e se mostrou inteira diante do caçador. Era tão
bonita, com um pelo tão sedoso, porém com uns olhos tão entristecidos que
parecia chorar por dentro. O homem não teve coragem de apontar a arma e começou
a chorar. “Mas por que chora meu bom caçador? Estou somente esperando ser
acertada para me tornar no prato do dia de sua família. Vamos, pense neles e
atire...”.
De repente o
caçador se virou e tomou o caminho de volta, de cabeça baixa, pensando no que
fazer. Empurrou a pequena cancela, mas percebeu que a cotia vinha logo atrás.
Espantado, nem teve tempo de dizer nada diante da pressa dela em falar: “Já que
você preservou a minha vida, tive uma ideia que talvez possa ajudar. É o seguinte...”.
E foi explicando tudo.
Durante o
resto do dia, entretidos com a cotia falante, os meninos nem lembraram a
barriga vazia nem de chorar pedindo comida. No outro dia, logo cedinho, o homem
seguiu com a cotia para a feira da cidade. E juntou tanto dinheiro com a
apresentação da cotia falante que deu pra fazer a feira do mês inteiro.
E ainda na
boquinha da noite desse dia ela se despediu de todos e retornou para a mata.
Porém, assim que entrou no mato, não demorou muito e foi ouvido um disparo.
Outro caçador silenciou de vez a falante.
Escritor
Membro da
Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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