*Rangel Alves da Costa
Ao cair da tarde, quando o sol já vai descambando além, então as famílias colocam suas cadeiras nas calçadas e debaixo dos pés de pau para receberem os sopros da brisa sertaneja. Assim no Alto de João Paulo, assim por todo lugar nos arredores da cidade sertaneja de Poço Redondo.
Mas ali no Alto há uma magia diferente, um encantamento diferente, um berço de profunda e reconhecida grandeza. Avista-se a casa de João Paulo, agora moradia de familiares. Avista-se a casa onde morou Adília por muitos anos. Sim, a mesma ex-cangaceira Adília e seu jeito pacato, simples e humilde de ser. Lar de Maximino, lar de tantas outras inquebrantáveis raízes e troncos ainda hoje portentosos.
O Alto de João Paulo, ainda que hoje o progresso tenha insistido de dar-lhe outra feição, pode até já ter sido mudado pelos arredores, mas não no âmago de sua nascente, naquela fileira de casas, unidas como de mãos de dadas, que vem desde a antiga casa de Seu Galego Ferreiro até se alongar já pela estrada que vai descendo para o riachinho. E se vivo estivesse, por essa hora João Paulo gritaria de sua porta ou de sua calçada para quem passasse adiante: Aonde vai, cabra?
Parece mesmo que o Alto de João Paulo preserva para si o que mais adiante não se preserva mais. Enquanto outras povoações, arruados e comunidades, logo se transformam com o passar dos anos e a chegada de qualquer progresso, o povo do Alto cuida que seu mundo não perca feição nem se desintegre pelo novo. Mesmo estando tão próximo à sede municipal, bastado caminhar cerca de um quilômetro e atravessar uma passagem molhada, nada do que acontece na cidade possui consequências no outro lado do riachinho que a tudo separa.
Casas pequenas, que outrora foram no barro e cipó, ganharam paredes de tijolos sem perder a essência ou até mesmo o tamanho. Casas com dois ou três quartos, varanda e cozinha, apenas. Mas de quintal sempre grande e indo sempre confrontar já com os arbustos ralos e as catingueiras miúdas de mais adiante. Alguma cria de quintal, como galinha e porco, e bichos de estimação, como cachorros e gatos. E vez por outra - e de modo diferente da constância de antigamente - alguma planta medicinal num canto de cerca.
As pessoas do Alto de João Paulo são todas simples, amigueiras, acolhedoras dos visitantes. Não negam qualquer diálogo nem proseado sobre suas histórias passadas, raízes familiares e causos que chegam à cidade já quase como lendários. E ali um celeiro de grandes histórias e grandes acontecimentos. Mesmo sendo uma comunidade pequena, dificilmente se encontra localidade interiorana com maior livro aberto e recheado de acontecidos, principalmente acerca de seus filhos famosos no passado.
Famosos no passado e em tempos mais recentes. No passado do Alto, as marcas e os marcos de uma meninada e juventude propensas aos passos do bando de Lampião. Com efeito, dos trinta e quatro cangaceiros de Poço Redondo que adentraram no bando de Lampião, muitos nasceram e conviveram ali. Adília, que seguiu o cangaço como companheira de Canário, era daquela comunidade, bem como seu irmão João Mulatinho, que no bando recebeu o apelido de Delicado. Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro (Du, Gumercindo e Antônio), filhos de Paulo Braz São Mateus e irmãos da famosa cangaceira Sila, eram também do Alto.
O próprio João Paulo era irmão daqueles quatro cangaceiros. E irmãos de João Paulo e destes eram os vaqueiros Humberto e Abdias. Assim, na família Braz o alargamento de raízes que ora se alongaram para o cangaço ora para os trabalhos da vaqueirama, do cuidado com os bichos e outros afazeres sertanejos. Mas também da comunidade do Alto uma raça de exímios caçadores, lavradores e mestres nos ofícios da sobrevivência. É, pois, a expansão dessas raízes que ainda subsiste na pequena povoação e se sempre no orgulho e no prazer da história e da simplicidade do viver.
A bem dizer, toda a comunidade do Alto está unida por alguma relação de parentesco. Muitos são os irmãos, filhos e sobrinhos, em linhagens que se comungam em outros parentescos antigos, que ali permanecem como troncos fincados para a eternidade. Daí que ao entardecer, quando muitos colocam seus bancos e cadeiras pelos sombreados das calçadas e debaixo do pé de pau, não se avista apenas uma vizinhança, mas uma verdadeira família.
Escritor
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