*Rangel Alves da Costa
Estava de partida. E por isso mesmo, e pela última vez, apressou-se entre os matos rasteiros, vencendo os tocos das macambiras e dos croatás, passou por cima de espinhos e armadilhas da terra, para alcançar a pedra grande onde costumava ficar observando o seu mundo ao redor. Acostumava ficar lá no alto com o jeito tão próprio de qualquer calango: balançando a cabeça, virando de lado a outro, tudo tão rapidamente que parecia o novo surgindo a cada instante.
Era um calango, apenas. E já envelhecido demais para continuar ali na mesmice dos dias. Principalmente agora, quando seu olhar astuto e cheio da sabedoria do tempo, já divisava a chegada de um sofrimento tão conhecido. Não queria ter tal certeza, mas nada lhe negava que a estiagem não demoraria a chegar e com ela todas as consequências mais dolorosas ao homem, ao bicho, a tudo que fosse sertão.
A terra quente, escaldante, quase em braseiro por todo lugar, impulsionava e fazia com que o calango se apressasse ainda mais. Uma galhagem seca despencou do alto e quase estraçalha o seu rabo. Mas não tinha nada acaso fosse atingido naquele lugar. Já nem se lembrava mais de quantos rabos havia perdido na sua luta pela sobrevivência. E não demorava muito para já estar refeito. Certa vez, um machado afiado acertou-lhe em cheio. O rabo ficou e ele saiu como que voando pra dentro de uma toca. Duas semanas ali comendo formiga e outros insetos, até que já estivesse inteiro novamente.
Já tinha ouvido de seu avô histórias do arco-da-velha. Sempre recordava aquelas dizendo sobre Antônio Conselheiro e Lampião. Certa feita, dizia o velho calango, cruzou a vereda onde o Conselheiro passava e quase se dá mal. Apressou-se para fugir daqueles solados de couro cru, mas quando olhou pra cima era o cajado do homem que descia já rente à sua cabeça. É agora, pensou. Mas no instante seguinte, ouviu “aleluia”, e a madeira foi novamente levantada. Já Lampião gostava de treinar pontaria em cabeça de calango. Por isso que onde o bando estivesse lagarto nenhum chegava perto.
Muito sofrido ali, de vez em quando imaginava. Vida de calango não era fácil, dizia a si mesmo. Bicho afoito, miúdo, ligeiro, corredor, mas num sofrimento danado para fugir das surpresas da mata. Seu medo maior era sair em disparada e quando desse conta já estar na boca de uma cascavel ou de outra peçonhenta qualquer. E sabia que corria esse risco a todo instante, não só na sua correria como debaixo dos feixes de mato e dentro das locas de pedra. Não era nada agradável encontrar, lá no fundo da toca, uma peçonhenta pronta para lhe atacar.
Certa feita - e isso jamais lhe saiu da memória -, quase vira comida de gente. Gostava de estar correndo ao redor do casebre sertanejo mais adiante, após uma malhada mais limpa, quando estranhou que toda vez que chegava ali, logo aparecia um menininho, magricela e barrigudo, com uma vara à mão e tentando acertar-lhe a cabeça. Será que esse menino quer mesmo me matar? Indagou. Mas um dia, numa instante em que o garotinho estava dentro de casa, ele se aproximou devagarzinho e resolveu entrar pelo canto da porta.
Lá dentro, logo percebeu o menino chorando e dizendo que estava com fome. Os pais, tristonhos de acabar mundo, nada responderam. Certamente estavam com a mesma fome. Então o calango percebeu o motivo de aquele garotinho tanto correr atrás de sua cabeça com a vara à mão. Queria acertá-lo para depois jogá-lo sobre as brasas do fogão de lenha no quintal. Foi quando o calango chorou, e tão triste ficou que ficou como que entorpecido junto ao barro de um canto de parede. Só despertou quando ouviu o pai dizendo: É um calango, pegue, pegue...
Saiu tão desesperado que nem sentiu o braseiro lhe queimar quando fugiu pela porta dos fundos. Já ao longe e descansado da correria, novamente chorou e novamente sofreu pelo terrível sofrimento daquela família. Mas sabia que todo o sertão estava na mesma agonia. Sabia que por todo casebre e por todo barraco havia uma família no mesmo padecimento. E por isso mesmo comendo calango, cobra, folha, palma seca, o que encontrasse para fingir de comida.
Nunca mais retornou pelos arredores daquela casinha. Tinha vontade sim, um desejo imenso de avistar novamente aquele barrigudinho. Mas era melhor evitar. Talvez sofresse mais ou talvez encontrasse a mesma vara em sua direção. Agora corria e se apressava por outros caminhos, porém em cima do mesmo queimor de terra. E seu objetivo agora era alcançar logo a pedra grande e de lá de cima se despedir daquele lugar. Do alto olhar ao redor, avistar aquele seu misterioso. Despedir-se como alguém que dá adeus àquilo que tanto amou. Doía-lhe por dentro, mas tinha que partir.
Mas partir pra onde? Perguntou a si mesmo. Lá longe o asfalto é quente demais e o pneu é duro demais. Não há como sobreviver no mundo dos homens. Então desceu da pedra e foi em direção ao casebre daquele menino barrigudinho.
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