Em Salvador fomos encontrar o Dr. Estácio de Lima, professor da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Direito e Diretor do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues. Não queríamos, nesta reportagem, apresentar apenas um lado da questão. Ao contrário, nosso objetivo era fornecer todos os dados, tôdas as razões alegadas tanto por uma como por outra parte, pois o público, e não nós, é que deve julgar. E para julgar precisa ter um conhecimento total do assunto. Do contrário, faríamos apenas baixo sensacionalismo, sem finalidade construtiva. Não nos interessa acirrar paixões cegas: a nós, interessa, apenas, que seja feita justiça, com serenidade e consciência. Assim, a palavra do Prof. Estácio de Lima, que é homem de grande inteligência e cultura, era absolutamente necessária que fôsse ouvida. Afinal de contas, que razões o levariam a manter os trágicos despojos no Museu que dirige, um Museu que é dos mais famosos, mais conceituados e mais sérios do Mundo? Sendo a Bahia o berço da nossa civilização, das nossas tradições cristãs, da nossa cultura, porque deveriam exisitir lá essas cabeças decepadas? Haveria alguma razão para tal? E se existisse, que razão seria essa? O próprio diretor do Departamento de Turismo da Prefeitura de Salvador, o escritor Carlos Vasconcelos Maia, que tem realizado um grande trabalho no seu setor, nos dissera que, do ponto de vista turístico, não havia nenhum motivo para a conservação das cabeças. A Bahia, com tantos encantos e tantas atrações, não precisava de tais troféus para mostrar aos seus visitantes. Pelo contrário, a maior parte dos turistas que iam ver as cabeças saíam marcados por uma impressão nauseante e desfavorável. Entretanto, conforme frisou êle, o Museu era um excelente centro científico e não um lugar de turismo. E se excusou de dar uma opinião específica, lembrando que a única pessoa habilitada para tal era o Prof. Estácio de Lima, um cientista brilhante e o responsável pelo Museu. Êste, por sua vez, não se negou a nos atender. E declarou:
“- As cabeças de Lampião e Maria Bonita foram ofertadas ao Museu, há vinte e um anos, pelo Prof. Lajes Filho, catedrático da Cadeira de Medicina-Legal de Alagoas. Aqui também estão as cabeças de Corisco, Azulão, Zabelê, Canjica e Maria, todos cangaceiros. Compreendo perfeitamente os sentimentos da família de Lampião. Mas precisamos, principalmente no campo científico, nos guiar pela razão, em vez de nos deixar dominar pelo sentimento. As cabeças estão conservadas pelo método egípcio de mumificação. Elas são documentos inestimáveis de uma época da criminalidade brasileira. Daqui a cem anos, elas ainda demonstrarão que Lampião não era um assassino nato, um lombrosiano. Êle era fruto de condições sociais, políticas e econômicas. Foi uma vítima do seu tempo e do seu ambiente. Essas cabeças são uma lição de tôdas as horas de que fenômenos, como o cangaceirismo, não podem nem devem ser exterminados com armas, mas sim com a criação de fatôres que não propiciem a sua eclosão. Dizem que elas não têm utilidade científica. Então, nada do que se encontra nesse Museu tem utilidade. Temos aqui corpos inteiros mumificados, esqueletos, fetos, monstros etc. Todos os restos mortais que aqui estão pertenceram a gente que também tem parentes, ou descendente. Deveríamos nesse caso enterrar tudo, não só dêste Museu, como de todos os outros que existem no mundo, inclusive as múmias egípcias. Por outro lado, é preciso lembrar que êste Museu é um centro científico. As cabeças não estão expostas em público, nem sofrem qualquer desrespeito. Em janeiro do ano passado estiveram aqui tôdos os professôres de Medicina-Legal e Antropologia do Brasil, reunidos em Congresso Nacional. Examinaram as cabeças e nenhum foi contra a sua conservação. Elas são peças científicas, como o são, por exemplo, os cérebros de Einstein e de Lenin, também conservados. As próprias religiões conservam os corpos dos seus santos. Entretanto, dizem que essas cabeças são como um estigma para a família de Lampião. Estigma, por quê? Se existisse algum estigma, êste não seria dado pelas cabeças mumificadas mas, sim, pelos atos de Lampião. E a lembrança deles não se apagará com o sepultamento dos despojos. Como já disse, porém, não há nenhum motivo de estigmatização, pois, hoje Lampião é visto e julgado não como assassino vulgar, mas como um produto do estado de coisas na sua época e no seu meio. Sabemos que os cangaceiros eram, não só recuperáveis, como um valioso material humano. E que fizeram os que hoje gritam pelas cabeças em prol dos cangaceiros que sobreviveram, aquêles que foram irmãos de luta e de sofrimento de Lampião? Nada. No entanto, eu fiz. Escrevi relatórios pedindo o indulto para todos ao Presidente da República. Rebelei-me contra o julgamento que queriam fazer em Volta Sêca, um julgamento de adulto, provando que êle era menor e depois lhe conseguindo a liberdade condicional. Trabalhei pela recuperação de todos e pela sua integração na sociedade. Continuo em contato com êles, ajudando-os nos seus problemas. Aí estão, vivos, trabalhando decentemente, com famílias constituídas, Labareda, Saracura, Cacheado, Velocidade, Deus Te Guie e muitos outros. Sabem quem são os guardas do Museu, os homens responsáveis inclusive pelas cabeças de Lampião e Maria Bonita? Labareda e Saracura, seus antigos companheiros, adimitidos por mim como funcionários de tôda a confiança. Nenhum dos antigos cangaceiros protesta, nenhum vê qualquer desrespeito pelo seu antigo chefe, todos compreendem o que aqui está. Os cangaceiros, meus amigos, são homens excepcionais, corretos, leais, sem o menor perigo de reincidência no crime, pois não são anormais. Foram presos exemplares e agora são cidadãos exemplares. As cabeças que aqui estão demonstrarão uma realidade social através dos tempos. Como poderemos, agora, por sentimentalismo, perder êsses documentos de uma época? Êste Museu, criado em fins do século XIX por Nina Rodrigues, tinha em seu poder as cabeças do famoso bandoleiro Lucas da Feira e de Antônio Conselheiro. Ambas se perderam no grande incêndio de 1905, que destruiu a Faculdade de Medicina e o Museu. Hoje, todos lamentam essa perda. Que dirão, no futuro, se destruirmos essas peças de tão alto valor para a ciência e a história? Sou humano e compreendo o que está ocorrendo. Mas, como já disse, não podemos nos deixar dominar pelo sentimentalismo, e sim pela razão. Êsse é o dever dos cientistas. E peço que também compreendam êste lado da questão”.
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