Por José de Paiva Rebouças
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Esnobe. De
comportamento comum às mulheres da vida. Preguiçosa e de nariz empinado. Sem
trato para as armas, sem ter qualquer ato heroico na trajetória e, ainda por
cima, afoita feito pessoa que quer sempre estar acima da razão. São estes
alguns dos traços que põem por terra a perspectiva de “heroína” de Maria de
Déa, ou Maria do Capitão, conhecida nos tempos atuais como Maria Bonita, a
cangaceira parceira de Lampião. Maria Bonita nunca existiu e passou a ser
chamada assim apenas após a sua morte, em 1938.
Assim
encontramos o esboço dessa figura “mítica” no livro Maria Bonita, sexo,
violência e mulheres no Cangaço, da jornalista Adriana Negreiros. Nos
encontramos em 2017, quando da passagem dos 90 anos da invasão do bando de
Lampião em Mossoró. Eu lançava a 8ª edição da revista Contexto com reportagem
especial sobre o acontecimento. Ela, construía uma reportagem sobre o mesmo
tema. Um ano depois, recebo de presente este livro que é, também, seu trabalho
de estreia na literatura biográfica.
O livro foi
recebido com enorme entusiasmo e se tornou um dos mais vendidos no Brasil. Não
por acaso. Adriana realiza um trabalho extraordinário de releituras para
compor, de maneira objetiva, e ordenada a trajetória do cangaço, tendo como
protagonista Lampião e como pano de fundo Maria Bonita. É a partir deste livro
que trazemos uma noção deste mundo instigante, mas o que mostramos aqui é uma
fração do que a autora nos conta em suas quase 300 páginas de revelações e
percepções do cangaço. Um tra
Não é
exatamente uma biografia exclusiva da chamada “rainha do cangaço”. O livro traz
muitas revelações sobre ela, mas o cangaço e Lampião aparece muito mais em suas
páginas do que a figura que estampa a capa. Não se trata de um engodo, acontece
que não há mais a dizer além do que foi dito. Até me arrisco a afirmar que
Adriana espremeu até a última gota e contou bem mais do que se podia esperar.
Pelo livro,
abstraímos que Maria de Déa era uma simples filha de camponeses pobres do
Nordeste do século passado, casada com um homem que não gostava e que,
possivelmente o traia com outros homens de melhor posição. Gostava de festa e
era faladeira. Sua história teria sido igual a da maioria das mulheres daquele
tempo se não tivesse sido escolhida por Virgulino Ferreira, o Lampião, para
acompanhá-lo no cangaço. As mulheres daquele tempo não tinham escolhas, pois os
cangaceiros eram reis erráticos do sertão.
No cangaço,
destacou-se apenas por ser esnobe e confrontar o companheiro que, sempre muito
paciente, aguentava como marido passivo seus impropérios, ainda que correndo o
risco de perder a moral ante seus cabras. Maria nunca foi exatamente respeitada
pelas outras mulheres do bando que a consideravam devido sua posição, embora se
incomodassem de não ter dela qualquer ajuda nas lidas dos ranchos e coitos.
“Era uma bacana, não fazia nada”, reclamou Dadá, companheira de Corisco.
Há no livro
muitos relatos de atitudes de Maria de Déa em favor de algumas pessoas, mas há
outros tantos demonstrando sua frieza, sobretudo quando se tratava de mulheres.
Não perdoava falhas das colegas e sempre ficava ao lado dos homens que se
sentiam donos de suas companheiras. Concordou com espancamentos e mortes
violentas de mulheres que não eram diferentes dela.
Existe um
aspecto de libertária na trajetória de Maria de Déa. Mulher afoita, nunca
baixou a cabeça para o primeiro marido que era um farrista, nem para o outro,
mesmo tendo este o poder de matá-la sem ressentimento. Peitou as leis do sertão
e conquistou o seu lugar na história por seu ímpeto e ausência de medo das
consequências. Mas isso não a torna, a meu ver, uma “feminista”, muito menos
exemplo de a ser referenciado. Maria era corajosa, mas não era justa.
Assim também
como não era justo e revolucionário o cangaceiro Lampião. Tratava-se de um
bandido perigoso e meio louco que foi enganado pelo governo e se apropriou
disso para viver fora da lei. Quando digo isso não faço apologia ao coronelismo,
mas às leis naturais cristãs que eram basicamente o que restava para o pobre
homem da caatinga. A fé de Virgulino nunca salvou Lampião.
Virgulino
queria poder e fama e, para isso, se aliou a coronéis, a oficiais corruptos e o
pior, atacou, matou, assaltou e humilhou centenas de pobres trabalhadores
famintos. Quando não o fez com as próprias mãos, autorizou seus cabras direta e
indiretamente.
Não tinha
santo no Nordeste do século 20, como mostrou Adriana. O nordestino faminto além
de não ter nada, a não ser a própria vida que não passava de 42 anos, em média,
ainda enfrentava a fúria de cangaceiros e milicianos. O estado, assim como
Lampião, era cruel e desumano. É também mentirosa a afirmação de que os
cangaceiros eram revolucionários que tiravam dos ricos para dar aos pobres.
Mesmo quando Luiz Carlos Prestes tentou vincular Lampião ao comunismo, isso foi
apenas propaganda e jogo de cena.
Como está no
livro que resume decididamente esta história brasileira, com poucos excessos, o
cangaço foi um movimento nascido da ausência do estado, mas que formou grupos
sanguinolentos, estupradores, desalmados e virulentos sedentos por dinheiro e
sangue. O resto é fantasia.
Dadá, o outro
lado desta história.
Ao contrário
de Maria de Déa, a cangaceira Dadá me atraiu bastante interesse e “certa
admiração”. Esta, ao contrário da outra, transformou sua sina em superação e
pode ser utilizada como exemplo de resiliência, apesar das exceções.
Sérgia Ribeiro
da Silva tinha apenas 12 anos quando foi sequestrada pelo cangaceiro Corisco,
então com 20 anos. A menina sempre foi forte, talvez por isso tivesse o apelido
de Sussuarana (onça parda), mas no cangaço ficou conhecida como Dadá.
Com furor
desumano, incomum até aos animais, Corisco a estuprou com enorme violência.
“Quando Corisco se saciou, a menina estava inerte, quase desfalecida, com a
região genital em carne viva, esvaindo-se em sangue” conta Adriana no livro.
Depois a deixou na casa de uma tia para que se recuperasse.
Quando foi
introduzida no bando, tempos depois, a menina precisou superar o medo,
colocando em primeiro plano sua postura de coragem. Como o companheiro era
afeito ao álcool, acabou assumindo o comando do grupo sempre que ele estava
fora de si. Conquistou sua confiança e, ao contrário do resto dos cangaceiros,
era compreensiva. O grupo de Corisco era, talvez, o único que permitia que
mulheres voltassem para casa caso seus companheiros morressem e elas não fossem
escolhidas por outro.
A história de
Dadá e Corisco termina com os dois executados pelas volantes após tentarem
deixar o cangaço. Mas isso não diminui o brilho daquela que, possivelmente,
tenha sido a verdadeira rainha do cangaço.
Adriana deixa escapar isso nas
entrelinhas e concordo com ela.
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