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quarta-feira, 29 de maio de 2019

HORAS SERTANEJAS (E A VIDA ASSIM ACONTECE...)

*Rangel Alves da Costa

A noite sertaneja sempre chega mais cedo. O anoitecer desponta quase à mesma altura do por do sol, eis que não há um limite normal de passagem de dia: quase sem boca da noite, depois da tarde a noite já chega.
Igualmente acontece ao alvorecer. No sertão mais autêntico, aquele dos afastados da cidade, a manhã é coisa quase inexistente, pois o sertanejo levanta ainda na escuridão e já se encaminha para os ofícios do dia, sem se alongar nos pormenores daquilo que se tem como manhã.
Quatro da manhã e já há cheiro de café no fogo, já há chiado de tripa torrando, já há aroma de cuscuz subindo aos ares. Quando não assim, por falta das iguarias, também nessa hora do dia a farinha com pedaço de quase coisa vai sendo saborosamente engolida, sempre com uma canequinha de café.
Depois dos ofícios do dia, quando o homem da terra retorna de sua labuta debaixo do sol ou da chuva, a comida sempre se repete, porém acaso o que restou do meio-dia não dê para o prato. Pão é coisa mais da cidade. O pão comprado em dia de feira, em sacola grande, geralmente não passa do terceiro dia.
Pão guardado dentro da lata de farinha, de modo a não envelhecer e mofar cedo demais. A meninada gosta que só. Menino nunca tem luxo na hora da fome. Gosta de pão seco, pão com manteiga e café, pão com caldo de carne, pão com uma nesguinha de queijo dentro. Doloroso e triste é quando não há nada para oferecer aos pequeninos na hora do “de comer”.


E assim acontece muito mais do que imagina a população citadina. Já passado das seis da noite e em muito lugar há muita barriga roncando, há muito bucho vazio, há muito menino chorando, há muita criança se derramando em lágrimas. E pais aflitos, desesperados, sem saber o que fazer. Cata ali, cata acolá, vira e revira panelas e latas e nada.
Quem dera dois ovos para dividir com quatro filhos. Quem dera uma farinha de milho. Mas às vezes não há nada mesmo. Que situação, meu Deus! Como pais reagem perante a fome de filhos? Como pais enfrentam a voz pedindo comida, a lágrima descendo faminta, a agonia naqueles que só pensam em ter um pedaço de pão? Só Deus sabe como sofrem esses pais.
E só Deus o milagre que pode acontecer diante de tal situação, pois é Ele, Deus, que sempre opera o milagre nas horas mais necessitadas da vida. O que faz, então? O milagre acontece numa comida inventada no inexistente, o milagre acontece num vizinho que bate à porta, o milagre acontece num pai que humildemente vai bater numa porta em busca de um auxílio.
Mas sempre acontece um milagre, ainda que dia após dia o milagre da sobrevivência vá se tornando cada vez mais difícil de ser conseguido. Então olhem para o relógio e vejam a hora. Quase sete da noite desta terça-feira de maio. No Alto de Tindinha, no Alto de João Paulo, nas Queimadas, nas Areias, nos Assentamentos, nos rincões próximos e mais distantes, o cheiro de comida já passeou pelos lares.
A partir de agora, acaso o sono não chegue tão cedo, algumas cadeiras estão sendo colocadas nas varandas, nas frentes das casas, pelas malhadas. A lua grande está bonita, poética, bem sertaneja. Mas - e disso tenham certeza - muita gente ainda não comeu, nada comeu. E simplesmente por falta de alimento. Só resta esperar o milagre sagrado. Ele vai acontecer.
Mas dói demais. Dói demais saber que muita fome terá que se contentar com um nadinha de pão ou um punhadinho de farinha seca com pedaço de qualquer coisa.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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