Por Manoel Neto
Ao leitor que passe os olhos em “As Audácias De Um Celerado”, última das três crônicas produzidas por Humberto de Campos, nos primórdios dos anos 30 do século passado, tendo como assunto o cangaço e publicadas em “Notas de um Diarista”, volume 09, das “Obras Escolhidas” do autor, será fácil constatar que a planejada expedição de Carlos Chevalier, oficial do Exército, o qual pretendia com armas e equipamentos sofisticados, inclusive aviões, invadir os sertões nordestinos em busca de Lampião, causara forte impressão no articulista. Se em linhas anteriores Campos conjecturara sobre as possibilidades de sucesso do empreendimento, agora é o malogro da empreitada que ocupa sua pena. Curiosamente, apesar de conservado inédito e somente publicado post mortem do escritor, no ano de 1954, em dois tomos, o “Diário Secreto” de Humberto que muita celeuma provocou quando veio a público traz uma referência, por sinal, desabonadora sobre o então tenente Chevalier, destacando que o comentário foi registrado no dia 07 de novembro de 1930, por conseguinte, pelo menos um ano antes do mesmo imaginar sua incursão militar na persiga de Virgolino e seu bando. Vejamos:
Outro julgamento da Revolução: foi preso a bordo de um navio estrangeiro, no momento em que este atracava, e levado para a Casa de Detenção, o ilustre homem de ciência, professor Carlos Chagas, Diretor do Instituto de Manguinhos, que acaba de realizar conferências na Alemanha, na França e na Itália, a convite do governo desses países. Dado o alarma pela imprensa, o delegado que fez a captura, o Tenente Chevalier (grifo nosso), declarou, ingenuamente: – Eu não sabia. Eu supus que Carlos Chagas era o ex- delegado Francisco Chagas, acusado de homicídio na pessoa do negociante Niemeyer... (CAMPOS, Diário Secreto, 1954, p. 103).
Carlos Chagas e o "eu não sabia..."
Adversário político da Revolução de 1930, cujo advento significou a cassação do seu mandato de Deputado Federal, o ex-parlamentar aproveita para tirar sua “casquinha” no novo regime, por conta da gafe protagonizada pelo Delegado revolucionário, detendo por inaceitável desinformação o ilustre brasileiro Carlos Chagas. Personagem de inegável notoriedade naquele ato da cena brasileira, o agora Capitão Chevalier ao imiscuir-se em assunto momentoso, colocou-se novamente na mira do cronista ao pretender capturar cangaceiros utilizando-se de métodos e meios convencionais como se fora a um combate clássico, em terreno familiar. Se já punha em dúvida o sucesso da missão quando ela ainda se afigurava como viável, apesar dos exageros, agora certo do seu fracasso, o cronista comenta:
“Quando há meses o Capitão Carlos Chevalier iniciou uma série de entrevistas à imprensa noticiando a sua partida para o Nordeste a fim de capturar o celebrado celebérrimo bandido Lampião, eu tive ocasião de escrever aqui mesmo uma crônica duvidando do êxito da expedição. Acreditava que o jovem oficial partisse; acreditava que marchasse para o sertão com os seus canhões, com os seus aviões, com os seus tanques e as suas metralhadoras. Mas duvidava que conseguisse o seu objetivo aprisionando o desabusado bandoleiro. Passam-se os dias, as semanas, os meses. E nem Lampião foi capturado; nem as metralhadoras repinicaram nas caatingas; nem os aviões estrondaram no céu virgem; nem a coluna se pôs em movimento; nem, sequer, o Capitão Chevalier partiu do Rio de Janeiro” (CAMPOS, Notas De Um Diarista, 1983:37)
Aponta a causa fundamental do fracasso ainda no nascedouro do pretensioso plano, desta vez, porém, isentando de responsabilidade o seu idealizador: “Eu estou certo, entretanto, que tudo isso independeu do simpático oficial revolucionário. Não lhe faltavam, evidentemente, para tal empresa, nem disposição, nem temeridade. Mas faltou ao governo dinheiro para organizar e pôr em movimento um aparelho tão dispendioso. Feito os cálculos no Ministério da Guerra, verificou-se, ao que parece, que para mobilizar uma coluna militar com tamanho aparato teria o Tesouro de despender quantia igual mais ou menos à que consumiu na guerra contra o Paraguai” (CAMPOS, ob. cit., p. 38).
Para o professor Jorge Mattar Vilela não teria sido tão somente a escassez de recursos do Governo Federal, o que não se constituía e nem se constitui exatamente em novidade, o motivo da desmontagem ainda no embrião do pretensioso arranjo militar do Capitão Chevalier, conforme indica: “[...] No entanto, a missão foi sendo sucessivamente adiada e, provavelmente por falta de verbas e bom senso de alguns (como o major Juarez Távora), decidiu-se que os Estados combateriam Lampião com seus próprios recursos” (Cf. VILELLA. Operação anti-cangaço: As táticas e estratégias de combate ao banditismo de Virgulino Ferreira, Lampião. In Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, 1999, n. 28, p. 112)
Não podemos desconsiderar outros fatores, os quais, certamente, terão influenciado esta e outras decisões do Governo Federal, particularmente no Nordeste, reduto histórico das oligarquias rurais. Vejamos o que observa o jornal “O Globo”, edição de 24 de abril de 1931, portanto, pós-advento da Revolução de 1930: “[...] Todos aquelles que estudaram o problema concluem que os cangaceiros do nordeste vivem sob o patrocínio dos grandes proprietários que, por intermédio deles, servem a política. O caso de Lampião é typico. Até o governo federal no tempo de Bernardes precisou dos seus serviços”
Getúlio...
Ignorar os interesses que associavam poderosos chefes políticos ao cangaço seria tapar o sol com a peneira. A complexa rede de apoio logístico estruturada por Virgolino Ferreira e copiada em menor escala por seus subgrupos não prescindia e não poderia mesmo prescindir da cooperação das classes dominantes do sertão nordestino, assim como, utilizando-se da coação e do terror incluiu em sua malha pequenos e médios proprietários, agregados e muitos outros grupos e indivíduos.Sobejamente divulgado é o fato de o bandoleiro Zé Baiano emprestar dinheiro a juros para comerciantes em Aracaju. Como explicar igualmente que armas originárias das forças policiais e das forças armadas tenham sido encontradas em poder de cangaceiros? Armados e fardados em 1926, no Juazeiro do Ceará, Lampião e seus acompanhantes foram momentaneamente reconhecidos como representantes do Estado, vindo desta época o uso de fardamentos entre os bandos e a patente de “capitão” do chefe maior do cangaço. Esses são fatos que evidenciam o entrelaçamento e a troca de “favores” que permeavam a subsistência e a sobrevida do cangaceirismo.
Se o Governo Bernardes vigorou no seu quatriênio sob a égide do Estado de Sítio, pressionado por sucessivas convulsões militares, na Presidência subsequente exercida pelo paulista Washington Luís deu-se o agravamento da crise econômica, principalmente em decorrência da Crack da Bolsa de Nova York, a que se seguiu uma quebradeira universal, com funestas repercussões para a economia do Brasil e levando de roldão a lavoura cafeeira em face da queda dramática das exportações do produto.
Arthur Bernardes
Arguto observador e atento à inquietação social vigente no período, o então Presidente da Câmara dos Deputados, Antonio Carlos Andrada, temeroso de uma radicalização do movimento popular em efervescência, já alertava as elites políticas quando lhes ensinou: "Façamos a revolução pelo voto antes que o povo a faça pelas armas". Ou seja, vão-se os dedos e fiquem os anéis. A reorganização político-administrativa da região, na qual despontava como principal condutor o Sr. Juarez Távora, alcunhado Vice-Rei do Norte, passava pela destituição de antigas lideranças, nomeação de Interventores estaduais e outras medidas que objetivavam fazer cumprir o programa do novo governo, programa este de caráter nitidamente reformista, porquanto, não se propunha a tocar em problemas estruturais da sociedade brasileira.
É nesta conjuntura delicada que o cangaço se profissionaliza e ganha espaço, situação em que à força das armas, Lampião e seus múltiplos acompanhantes, habilmente subdivididos, bem informados e municiados, transgridem a Lei e enfrentam a repressão com astúcia e inegável retaguarda política.
Percebendo que o momento se apresenta favorável aos cangaceiros, por conta do conjunto de fatores acima apresentados, Humberto de Campos repassa informação colhida em jornais: “O insucesso do plano anunciado no Rio, foi, porém, acender o olho que resta ao famigerado salteador nordestino, acirrando-lhe a índole sanguinária. Esporeando seus cavalos árdegos e os seus instintos selvagens, desenvolveu ele a própria atividade, matando, roubando, incendiando, estuprando. A desistência silenciosa do Capitão Chevalier foi, no seu entendimento de primitivo, estrondosa vitória sua. E quando chega a uma Estação Telegráfica dos altos sertões da Bahia, de Pernambuco ou de Alagoas, o seu primeiro cuidado consiste na transmissão deste telegrama irônico para a sede dos distritos, nas capitais: Lampião continua esperando o Capitão Chevalier” (CAMPOS, ibid. pp.38,39).
Por certo que o aborto da Expedição Chevalier seivou a vaidade e intrepidez do Capitão Virgolino. Sentiu-se lisonjeado, mormente, porque despertara a atenção de um colega do Exército, sediado na longínqua Capital da República, o que significava na sua avaliação de homem inteligente e não primitivo, como quer Humberto de Campos, uma vitória, E o era de fato. Mais um entre dezenas de planejamentos oficiais e particulares, fadara-se ao fracasso. Assim como no caso da seca, muito se elocubrava e pouco se produzia de efetivo e eficiente para enfrentar as estiagens periódicas e o banditismo intermitente.
Quanto ao uso dos meios de comunicação disponíveis tanto para debochar de autoridades, como para extorquir benefícios e fazer ameaças, é fato exaustivamente narrado nos registros documentais e na bibliografia sobre o cangaço esse comportamento principalmente de Lampião, a que se que seguiam ações como o aprisionamento e, em alguns casos, o assassinato de funcionários, nunca deixando de executar como medida acautelatória o corte das linhas de transmissão, evitando dessa maneira a troca de informações entre os prepostos policiais e os gestores civis dos municípios. Visavam igualmente às obras ferroviárias e rodoviárias. Dois registros ilustram nossa afirmação. O primeiro diz respeito à iniciativa de funcionários dos Correios, documentando uma ocorrência transcorrida em suas jurisdições: “[...] No processo de número 3.350, de março de 1927, o agente dos Correios de Jatobá alertava à polícia, via telégrafo, para o pânico causado por Lampião "que ameaçava cometer depredação a esta cidade". Em outro caso, ao comentar o roubo de 346$500, o administrador da localidade de Villa Bella, Benvindo Loreto, assegurava que a região estava infestada por aquele bando sinistro no caso, o de Lampião “
Professor Manoel Neto
Maria Christina da Matta Machado nos descreve outro momento que explicita o posicionamento adotado pelo sempre que possível por Lampião, diante do que se lhe encantava por representar o moderno, entretanto, comprometedor para segurança dos grupos: .“[...] tomando conhecimento da construção de uma rodagem, que estava sendo protegida pela polícia, resolve juntar-se ao grupo de Antônio de Engrácia e planeja o assalto. Nas obras estavam todos trabalhando tranquilamente, sem receio algum, porque eles sabiam que Lampião não atacava, onde existissem garantias. Um certo dia, entretanto, quando ninguém esperava, eis que surge Lampião e seus caibras, aos gritos. [...] Poucos segundos depois, ouviam-se tiros por todos os lados. Trabalhadores e soldados misturados correram espavoridos se precipitando na mais desordenada fuga. Lampião assaltou a rodagem, pegou todo material que estava sendo usado, além dos fuzis e as munições. O que não pode levar consigo, colocou num caminhão e tocou fogo” (MATTA MACHADO, pp. 147-148).
Continua...
Manoel Neto
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