*Rangel Alves da Costa
Pela estrada, seguem o cego e o surdo...
O cego: Nada consigo enxergar e espero que me ajude nessa caminhada...
O surdo: Não entendi muito bem o que disse, pois sou meio surdo, mas o que quiser saber pode me perguntar em voz alta...
O cego: Quem dera ser assim como você, que tudo vê e pode dizer o que é feio e o que bonito...
O surdo: Esquisito? Sim, tá tudo esquisito mesmo, e tá assim porque desmataram tudo. Como você tá vendo, quase não restou um só pé de pau em pé...
O cego: Não vejo. Minha manhã é na cor da noite, meu dia é no negrume da noite, minha noite é a mais noite das noites...
O surdo: Açoites, isso mesmo. O homem merece uns açoites pra aprender a ser mais homem e ser mais responsável. O sol já desce com fornalha vermelha...
O cego: Por falar em cor vermelha, eu queria demais saber como é o vermelho da cor vermelha. Também a cor amarela do amarelo. Só conheço a cor da noite...
O surdo. Pernoite? Nem pensar. Nada de pernoite, amigo. É muito perigoso pernoitar aqui. Os olhos da maldade e da violência estão por todo lugar...
O cego: Por falar em olhos, não conheço nem os meus. Penso que olhos são feitos de cor vermelha, amarela, azul, de muitas cores. É por isso que as pessoas sabem das cores...
O surdo: Disse bem: dores. Dores do mundo, isso mesmo. Vivemos num mundo de dor, amigo. Em cada passo se carrega um laço...
O cego: Por falar em passo, se eu seguir sozinho, caminhando e caminho, aonde vou parar? Será que o mundo tem fim?
O surdo: Jasmim não, que é flor bonita. Carmim também não, mas a flor mais espinhenta que existir. Mas também faz, pois tem gente que não sabe separar o joio do trigo...
O cego: Infelizmente não sei separar nem a flor nem o espinho. Um dia me disseram que um jardim não tem nada de flor nem de borboleta, pois apenas um lugar aonde muitos vão apenas para sentir o que não conseguem em meio a outros homens.
O surdo: Lobisomens, sim. Existe muito lobisomem por aí, e não somente em noite de breu, mas no clarão do dia e pela cidade. A gente pensa que é gente, mas é tudo lobisomem...
O cego: Acaso eu encontre um lobisomem, pra mim não tô vendo nada. Aliás, não vejo nada mesmo, só por ouvir dizer. Dizem que é muito perigoso...
O surdo: Dengoso, dengoso, dengoso nada. Dengoso é político safado, que chega perto de você com a maior santidade, mas para depois lhe dar o bote. Tudo jararaca, tudo cascavel...
O cego: Por falar em cobra, certa feita dizem que eu pisei em uma. Minha sorte foi que não era o meu calcanhar que ela estava esperando. Também ouvi dizer que cobra é bicho tão ruim que chega a morrer seca se o calcanhar que ela estiver esperando não passar. Só se satisfaz com o calcanhar de quem está esperando...
O surdo: Amando? Que amando que nada. Ninguém ama mais ninguém, muito menos namorado, e muito menos casado. Tem cada mulher bonita que parece uma flor, mas sem amor verdadeiro, sem amor no coração, sem amor para oferecer a ninguém...
O cego: Por falar em flor, flor é bonita mesmo? Mas não adianta me dizer. Não sei o que é bonito nem feio...
O surdo: Veio, e veio parecendo forte. A nuvem tá toda carregada. Vem chuva de trovada por aí. Ou a gente apressa o passo ou a estrada vai virar mar...
O cego: Mar, disse mar? Coisa boa, então vou ficar. Sempre quis, mas nunca estive nem sei o que é o mar. Então vou esperar o mar, vou ficar...
Escritor
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