Por Xico Sá
Uma festa de
arromba promovida pelo Humaytá Futebol Clube fazia ferver a sociedade de
Mossoró naquela noite do 12 de junho de 1927, véspera do dia de Santo Antônio.
Foi quando começou a correr a notícia de que Virgulino Ferreira, o temido
cangaceiro Lampião, se aproximava da cidade.
Horas antes,
ele e seu bando tinham atacado a vizinha vila de São Sebastião (atual
município de Governador Dix-Sept Rosado). Em poucos momentos, todo o rigor
daquele baile – que exigia branco para os cavalheiros e azul e branco para
as damas – amarfanhou-se e perdeu graça, abalando o momento de
glamour ostentado pela elite do sertão.
Mossoró era
uma das mais prósperas cidades do Rio Grande do Norte. O coronel Rodolfo
Fernandes, o prefeito, já havia alertado, nos últimos dias, sobre o perigo do
ataque do rei do cangaço ao município. A maioria dos habitantes, no entanto,
parecia não acreditar. Tudo estava tão tranquilo que, no mesmo 12 de junho,
Mossoró parecia mais preocupada com o clássico entre os times de futebol do
Ipiranga e Humaytá do que com a possível chegada de Lampião às suas cercanias.
A partida de
futebol transcorreu dentro da mais absoluta rotina. Já o baile, por mais que
alguns participantes e os diretores do clube tentassem abafar as notícias vindas
da vila de São Sebastião, foi tomado pelo alvoroço e pelo medo. O apito da locomotiva da rede ferroviária suplantava o pânico
dos mossoroenses, narra o jornalista Lauro da Escóssia,
testemunha do acontecimento, no livro Memórias de um Jornalista de Província.
Os trens começavam a se movimentar, conduzindo famílias e
quantos quisessem fugir de Mossoró. Segundo
ele, durante toda a noite e na manhã seguinte, a ferrovia permaneceu
ininterruptamente agitada.
Na vila de São
Sebastião, conforme as notícias que desmancharam o baile do clube Humaytá,
Lampião havia incendiado um vagão de trem cheio de algodão e depredado a
estação ferroviária. Havia também arrasado a sede do telégrafo, uma modernidade
sempre combatida pelo chamado rei do cangaço, na tentativa de impedir que o seu
paradeiro fosse sendo informado e ajudasse a polícia a persegui-lo.
Até as
primeiras horas da manhã do dia 13, muita gente havia deixado suas casas em
Mossoró, que à época tinha cerca de 20 mil habitantes. O temor ao famoso
cangaceiro não era brincadeira. Duas mulheres em pleno serviço de parto, conta
Escóssia, foram retiradas em macas para a cidade de Areia Branca, a quilômetros
dali.
Mas o
esvaziamento não era só fruto do pânico. A estratégia da prefeitura – que havia
conseguido ajuda oficial em armas e munição, mas não em combatentes – era manter
na cidade apenas os habitantes que estivessem armados. Quanto mais vazio o
lugar, na avaliação do coronel Rodolfo Fernandes, maior a chance de repelir o
bando de cangaceiros.
A estratégia
Fazia tempo
que Lampião planejava encarar o desafio de invadir Mossoró. Seria a maior
tentativa de rapinagem do bando, como conta o historiador Frederico
Pernambucano de Mello no seu livro Guerreiros do Sol, no qual defende a
tese de que o cangaço era um meio de vida. Pouco antes de chegar à cidade,
Lampião enviou um bilhete chantageando a prefeitura.
Nele, pedia a
quantia de 400 contos de réis para não atacar o município, um valor pelo menos
dez vezes superior ao que costumava exigir em ocasiões semelhantes. Na tarde de
13 de junho, feriado de Santo Antônio, ele e o bando já se encontravam nos
arredores do município potiguar.
Sem resposta
ao primeiro comunicado, Lampião, já impaciente, bufando de raiva, manda um
segundo aviso. Os termos do bilhete, que consta nos arquivos do jornal O
Mossoroense (um dos mais antigos do país), eram muito diretos e recheados de
erros de português: Cel. Rodopho, estando eu aqui
pretendo é drº (dinheiro). Já foi um a viso, ai pª (para) o Sinhoris, si por
acauso rezolver mi a mandar, será a importança que aqui nos pedi. Eu envito
(evito) de Entrada ahi porem não vindo esta Emportança eu entrarei, ate ahi
penço qui adeus querer eu entro e vai aver muito estrago, por isto si vir o drº
(dinheiro) eu não entro ahi, mas nos resposte logo.
Ele assinava Cap. Lampião.
O coronel
Rodolfo Fernandes e seus homens disseram não a Virgulino, para surpresa do mais
temido cangaceiro de todos os tempos. A cidade tinha o dinheiro, informou o
prefeito. Mas Lampião teria que entrar para apanhá-lo. Às 16 horas daquele dia
13, caía uma chuvinha fina e havia uma neblina de nada sobre Mossoró. Foi
quando os primeiros estampidos de bala ecoaram.
Sangue e areia
Lampião tinha
53 cangaceiros no seu bando. Não imaginava, porém, que iria enfrentar pelo
menos 150 homens armados na defesa da cidade. O repórter Lauro da Escóssia
estava lá, vendo tudo de perto. Durante
toda a noite, a detonação de armas em profusão. Parecia uma noite de São João
bem festejada, escreveu em O Mossoroense. Mas
as mulheres rezavam para outro santo junino, o Antônio festejado naquele dia.
No ataque,
Lampião perdeu importantes cabras de seu bando. Colchete teve parte do crânio
esfacelado por balas. E Jararaca, depois de capturado, foi praticamente
enterrado vivo. Em menos de uma hora após o início da luta, o capitão do sertão
– outra das alcunhas dadas ao célebre cangaceiro – sentiu que dominar a cidade
seria praticamente impossível.
Ordenou então
a retirada da tropa, para evitar a perda de mais homens e não manchar ainda
mais sua reputação. A partir desse momento a estrela
do bando lentamente passaria a brilhar cada vez menos,
escreveu o historiador Pernambucano de Mello.
O mito do
Lampião invencível caíra por terra, o que reanimou a força policial, que passou
a enfrentar o rei do cangaço com menos temor. Era o começo do declínio da
carreira de Virgulino. Por causa do desastre no Rio Grande do Norte, as
deserções no grupo foram consideráveis.
Mossoró, cidade conhecida por marcas pioneiras (como quando foi o primeiro município brasileiro a admitir o voto feminino, em 1934), passaria também à história por esse acontecimento que assombrou todo o Nordeste. Até hoje, os filhos daquela terra se orgulham do feito de braveza ao contar que seus antepassados botaram Lampião para correr. Os inimigos do cangaceiro, entretanto, ainda teriam que esperar mais 11 anos pela morte do capitão, assassinado somente em 1938, na chacina da gruta de Angicos, em Sergipe.
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