Por Antônio Corrêa Sobrinho.
Do Jornal O ESTADO DE S. PAULO, de 11/04/1987 (pág. 53 e 54), extraio a palavra de Gilberto de Mello Kujawski sobre o best-seller
"GUERREIROS DO SOL", de Frederico Pernambucano de Mello.
Sempre me
impressionaram fundo as fotografias de cangaceiros. Emana daquelas figuras
torvas, armadas até os dentes, certa dignidade sombria de demônios das
caatingas, capazes de realizar o inconcebível em maldades, e também em bravura.
Aquele silêncio que nos colhe ao contemplar fotografias assombra-se em
fascinação; a fascinação do mal, ou melhor, dos arquétipos visíveis do mal. De
onde provém a autoridade ferina daqueles homens de tantas ruindades, senão de
saberem encarar a morte a toda hora, sem estremecerem uma só fibra do rosto
crestado pela energia do Sol e pela dureza das armas? Homens dos avessos,
egressos das profundas do sertão, que nos amedrontam por não terem medo de
nada, e que, ao destemerem até Deus, se sentem integrados nas hostes de
Satanás. Aquele clássico punhal nordestino, atravessado na cintura de todos
eles, não serve só para “matar”, e sim para sangrar ritualmente o inimigo, até
a última gota, como o sacerdote sangrava no altar a vítima sacrificial. Não são
homens sem Deus, são homens que cultuam Deus com os ritos do Diabo.
Bandoleiros, mas não crápulas. Escravizados a um conceito arcaico de honra,
sentem-se no direito de saquear e matar como quem faz justiça pelas próprias
mãos. Cavalaria andante às avessas. Fotografados em bando, com seus chapéus de
couro e rifles em punho, parecem sobreviventes desgarrados de Canudos, a
serviço de um Antonio Conselheiro eternizado na alma popular do sertão.
Cangaço,
escarninha palavra, varada de maldição. Tem o peso da canga e o relâmpago do
aço.
II
“Eu fui aquele
que disse
E, como disse,
não nego,
Levo faca,
levo chumbo,
Morro solto e
não me entrego.”
A quadra
popular sertaneja, da metade do século XIX, serve de epígrafe ao primeiro
capítulo do livro “Guerreiros do Sol”, da autoria de Frederico Pernambucano de
Mello, Editora Massangana, Fundação Joaquim Nabuco (1986). Prefácio
interessantíssimo de Gilberto Freire. Frederico Pernambucano de Mello, jovem
sociólogo formado na larga visão da escola gilbertiana, retoma o tema do
banditismo no nordeste do Brasil. Seu primeiro cuidado foi expurgá-lo de certas
interpretações ligeiras não por acaso inspiradas na retórica marxista. Como a
de Cristina Mata Machado, ao considerar o cangaço como “resposta à violência do
coronel”. Ou da de José Honório Rodrigues, quando o define como “resposta
contra o monopólio da terra e exploração do trabalhador rural pelo
latifundiário. Marx não merecia que sua dialética da luta de classes fosse
assim banalizada e mecanizada por discípulos tão simplistas.
O autor,
liberado de fórmulas já prontas e definitivas, retoma o tema do cangaço a
partir de seus pressupostos históricos. Vai examinar “como se fez o fato”.
Concluindo que o cangaço não foi nenhuma “resposta” a qualquer tipo localizado
de dominação, e sim um fenômeno alicerçado numa sociedade toda ela varrida pela
violência como forma de vida. A violência do cangaço não apareceu como
resultado da violência dos senhores rurais, sim que uma e outra faziam coro a
um sistema de vida coletiva indissociável da violência. Como diz muito bem
Vamireh Chacon, o autor “viu que o banditismo agrário se insere naturalmente no
quadro maior da violência rural, esquecida ou ignorada por antecessores de
pesquisa, mais especificamente na violência do ciclo nordestino do gado”. Nesse
mundo, a violência não era contra a lei, a violência era a lei universal. O
senhor rural podia ser também um cangaceiro, e vice-versa.
Frederico
Pernambucano lembra a migração do homem do Nordeste, que saiu das terras
agricultáveis do massapé para “o universo cinzento da caatinga”, em fins do
século XVIII e começos do século XIX, fazendo surgir um novo tipo de cultura no
Interior, marcado pela predominância do individual sobre o coletivo, com o
reforço vigoroso do sentimento de independência e autonomia na luta contra o contorno
vasto e agressivo do sertão. O sedentarismo do ciclo do açúcar dá lugar ao
nomadismo do ciclo do gado. Desenvolve-se um tipo humano agreste, combativo,
prepotente, ao mesmo tempo que o cenário cultural se imobiliza no tempo,
naquilo que Costa Pinto chamou de um “quadro arqueológico. O sertanejo –
escreve o autor, lembrando Euclides da Cunha – não é nenhum degenerado, e sim
um retrógrado, arcaizante no convívio social, na economia, na moral e na
religião. Não fala português errado (como parece ao homem da cidade), e sim o
mais puro vernáculo do século XVI, contemporâneo de Gil Vicente e Camões. O
sertanejo nascia, crescia e vivia limitado pelo mais severo isolamento,
organizando o poder por sua conta e risco, longe dos centros oficiais de
administração, polícia e justiça.
O tipo do
cangaceiro, neste ambiente, erige-se como o representante mais completo do
conjunto dos atributos de valentia que marca o sertanejo. Explica o autor que
entre o sertanejo e o cangaceiro, de início, não houve nenhum antagonismo, e
sim um acordo tácito, no qual o homem do cangaço aparecia como verdadeiro
arquétipo de bravura, pela liberdade selvagem que encarnava. Assim nos versos
populares sobre a saga de Antônio Silvino, o “Rifle de Ouro”, ou “Governador do
Sertão”, ao despontar deste século:
“Como ninguém
ignora
Na minha
pátria natal
Ser cangaceiro
é a coisa
Mais comum e
natural;
Por isso
herdei de meu pai
Este costume
brutal...”
Esta primeira
fase foi a do cangaço “endêmico” (na terminologia do livro), bem tolerado pela
sociedade local. O cangaço só passou a ser repelido por essa mesma sociedade,
quando da segunda fase, a do cangaço “epidêmico”. Palavras do autor: “Esses
surtos de cangaço epidêmico, em cuja etiologia se acham sempre presentes
fatores de desorganização social e de consequente inibição das atividades
repressoras, tais como revoluções, disputas locais, agitações de fundo místico
ou político ou social, lutas de família e prolongadas estiagens, provocam o
rompimento do equilíbrio que permitia à sociedade sertaneja viver, produzir e
continuar crescendo lado a lado com cangaceiro, com base num compromisso tácito
de coexistência (p. 45).
Com a sucessão
de surtos epidêmicos é que o cangaço se criminaliza socialmente, não hesitando
o autor em pintar o cangaceiro como verdadeiro bandido ou malfeitor, embora
frequentemente sublimado como vingador de alguma afronta ou cruel injustiça.
Esta sublimação é analisada em termos sociológicos por Frederico Pernambucano,
como a teoria do “escudo ético’, assim desmistificada no livro: “Este
instrumento capaz de convencer a quem o utilizava e à sociedade da nobreza da
vida putativamente vingadora dos bandidos, mas que não passava de um bovarismo
épico facilmente aceito como real por uma cultura carente de símbolos desse
gênero” (p. 71).
À figura
legendária de Lampião, titular máximo do cangaço, o jovem sociólogo dedica todo
um capítulo inspiradamente titulado “As muitas mortes de um rei vesgo”. Mesmo
se recusando a vestir de herói Virgulino, trata-o como rei, pela soberania de
sua autoridade e até mesmo pelos seus repentes de perdão e liberalidade.
III
“Guerreiros do
Sol” é livro que se lê com interesse, não só pelo que, efetivamente apresenta
de sedutor, como pelo que poderia apresentar. Por exemplo, o enfoque mais
vigoroso do cangaceiro em perspectiva antropológica. Acima das colocações de
ordem estritamente social ou sociológica, e de qualquer juízo de valor, mesmo
sem querer em nada romantizar o cangaço, a verdade é que o cangaceiro constitui
uma certa variedade antropológica particular, com traços culturais e biotipo
singulares e bem marcados.
Desafiando o
bitolado pedantismo acadêmico que despreza qualquer observação pessoal como
simples “impressionismo”, sem valor hermenêutico, e animados pelo conselho de
Ortega, segundo o qual é vendo com os olhos da cara que se faz as duas terças
partes de uma filosofia que não seja uma escolástica, voltemos a observar as
fotografias de cangaceiros, que sempre nos impressionam tanto, como foi dito.
Nota-se em todos eles uma tensão peculiar, aliada à concentração de energia que
parece inesgotável, e aquele dose superior de “magnetismo animal”, esse
conceito arcaico de Mesmer, por isso mesmo coerente com a tipologia arcaica do
homem do sertão. Nada daquela displicência desengonçada do sertanejo em repouso,
tal como fixada na página sempre lembrada de Euclides da Cunha. Pelo contrário,
o homem do cangaço tem tudo do sertanejo subitamente desperto e aceso para a
luta, na descrição do mesmo autor: “O homem transfigura-se. Empertiga-se,
estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça
firma-se lhe alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado
e forte; e corrigem-se lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos
os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu
canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e
potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”
(Os Sertões).
O cangaceiro
desdobra-se deste sertanejo pintado por Euclides, em permanente pé de guerra
com o contorno. Aquele sorriso é puro negaceio. Seus sentidos adquirem
hiperestreita inusitada, semelhante à dos índios, ou das feras, capaz de
pressentir o inimigo à distância de muitas léguas. Sua musculatura, nada ostensiva,
ganha a têmpera do aço, e seus nervos, a agilidade inesperada dos felinos.
Compare-se com
as fotos dos caçadores de cangaceiros, policiais, ou “volantes”, também homens
duros e valentes. Só que todos eles de forma arredondada e de cara lavada, com
o ar ingênuo de verdadeiros homens da lei, sem aquela tensão psicofísica
anormal, sem nada daquele éclat de pactários, ostensivo na postura dos
cangaceiros. Quase a diferença entre o animal bravio e a planta.
É a vida
nômade, ao ar livre, e sobretudo ao sol e aos perigos do sertão, que confere ao
cangaceiro a peculiaridade do seu biótipo, e sua singularidade antropológica e
cultural. O sertão nordestino e o sol são elementos inseparáveis da mesma
realidade. Esta é um ambiente adusto, calcinado, suplicante, no qual o homem,
para sobreviver, tem de ser em tudo o contrário de um vegetal, a saber,
sensorialidade e nervosidade puras. Tais atributos, assumidos desde logo pelo
sertanejo, são ainda mais aguçados na vida absolutamente sem segurança do
cangaço.
O cangaceiro a
cavalo em seu nomadismo selvagem está polarizado com o sol, atrelado ao sol.
Por isso o título “Guerreiros do Sol”, escolhido para esse livro dedicado ao
banditismo no Nordeste do Brasil, além da beleza literária, irradia certeira
intuição antropológica. A deixa não escapou à habitual perspicácia de Gilberto
Freire, que assim se pronuncia sobre esse ponto no prefácio que dedicou ao
livro:
“Sugestão a
que pode ser associada esta outra: a de, ao sertanejo do nordeste brasileiro –
região de muito sol, como que masculinizante -, ter faltado maior convívio com
a água: uma água como que feminilizante, feminilizante da própria culinária,
nos sertões tão masculinamente ascética. E feminilizante também, através de uma
frequência de banho de rio, de ação, além de higiênica, recreativa, esportiva,
refrescante e capaz, como há quem suponha ser o caso entre gentes árabes, de
atuar psicologicamente sobre impulsos bravios, atenuando-os e até adoçando-os.
“... Em certa
página, apresenta um desses tipos de bandido, em dias de ortodoxo, indiferente
tanto a prazeres de alimentação como à constância de convívio com mulher,
enquanto em atividade absorvente e monossexualmente belicosa, repele o contato
habitual com o feminino. Naquela página referida por Gilberto Freyre, o autor
recolhe o depoimento de Sinhô Pereira, cangaceiro da velha guarda: “No meu
tempo não havia mulheres no bando. Ninguém andava com mulher. Eu acho até
esquisito que depois Lampião e o pessoal dele começasse a carregar mulher” (p.
82). Frederico Pernambucano ainda reproduz outro testemunho eloquente do
ex-cangaceiro Balão: “Homem de batalha não pode andar com mulher. Se ele tem
uma relação, perde a oração e seu corpo fica como uma melancia: qualquer bala
atravessa” (p. 82).
A hipótese de
homossexualismo seria precipitada e impertinente. A restrição aqui inclui
qualquer tipo de contato sexual, fale-se, portanto, em “monossexualismo”,
conforme a terminologia de Gilberto Freyre. A dedicação integral às armas,
quando levada ao fanatismo, exige a misoginia, como garantia da
invulnerabilidade do guerreiro. Na medida em que esse se abandona à tentação da
mulher, ou do sexo, ele "abre seu corpo” e se expõe à virulência
implacável do inimigo. Também Guimarães Rosa sabia muito bem dessas coisas, e o
drama de Diadorim, em “Grande Sertão”, tem os mesmos pressupostos.
No entanto, a
analogia surpreendente e inesperada do homem do cangaço, modelado pela
disciplina do sol, das armas, e do ascetismo sexual, na tensão crispada e
solitária do princípio masculino, essa analogia se revela é com a figura do
guerreiro, tal como descrita pelo poeta-soldado japonês Yukio Mishima, no livro
traduzido sob o título “Sol e Aço”. “Sol e Aço” fazem o contexto do homem do
cangaço e do samurai de Mishima. Indagado, de certa feita, como conseguia
ativar tanto o brilho do seu fuzil, respondeu Lampião: “Só o aço com o aço dá
esse brilho...”
IV
Em “Sol e Aço”
a autoafirmação da virilidade na vida militar chega até o delírio, o delírio
catastrófico que conduzirá à morte fulgurante do herói, sem que a mais leve
sombra do feminino perpasse pelo texto do poema em prosa. A ascese do sol e do
aço educa o corpo e o espírito de Mishima na sublimação do épico, que liga a
terra e o céu, a vida e a morte, o tempo e a eternidade. “Mais tarde, muito
mais tarde, graças ao sol e ao aço, eu viria a aprender a linguagem da carne,
mais ou menos como quem aprendesse uma língua estrangeira. ” Só que essa
“linguagem da carne”, apreendida pelo guerreiro nipônico, não tem a menor
afinidade com o feminino nem com os abandonos do erotismo. A carne de Mishima,
revigorada pelo sol e pelo aço, não se consuma nem no amor heterossexual nem no
amor homossexual (ao menos neste livro), e sim na tensão sobre humana dos
exercícios militares. Mishima assimila plasticamente o vigor do sol na
exuberância de sua musculatura, a qual ia adquirindo cada vez mais as
qualidades do aço: dureza flexibilidade e brilho. A ação, fielmente, me ensinou
a correspondência entre o espírito e o corpo. ” Mishima não resiste ao
narcisismo romântico, traído nestas linhas: “Em especial, me era caro um
impulso romântico em direção à morte, mas, ao mesmo tempo, eu exigia um corpo
estritamente clássico como veículo desse impulso”.
A chave da
analogia entre os “guerreiros do sol” e o samurai de Mishima está na
radicalização unilateral do princípio masculino hermetizado em si mesmo como
fonte invulnerável de energia épica, temperada pelo sol e pelo aço.
A diferença é
que os cavaleiros do sol, bons centauros do sertão, jamais perderam a
pertinência com a Terra, ao passa que o herói japonês, embriagado de
romantismo, escorregou voluntariamente rumo ao infinito, por aquela tênue linha
de fuga que liga a Terra ao Céu, ao azul vertiginoso do Céu, que o fulminava
com apelos irresistíveis.
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