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quarta-feira, 1 de março de 2023

MENINA DE ENGENHO

Por José Cícero

Enquanto ela brincava a contemplar seu pai na lida dando ponto ao mel.

As moendas do engenho de Antônio Argeu mastigavam, literalmente, os canaviais.

Barulho intermitente dos afazeres do eito. Gentes e burricos fustigados sob a gritaria matuta e alegre dos cambiteiros.

Braseiro da fornalha alimentando os tachos quentes de metal.

A casa Grande no alto. Os pés de Oitis, o tabuleiro, a estrada de areia e barro batido, a paz, como a dormitar no alpendre do casarão. O riozinho sempre corrente.

A harmonia de todas as coisas parecia beirar a perfeição primordial.

Enquanto isso, a bagaceira secava ao sol como a querer pintar de cinza e branco o sagrado chão do mundo inteiro. Enquanto a menina do engenho colocava um a um, os seus sonhos e utopias no varal.

E a própria vida ali mesmo parecia se encher de aromas, fumaça e doçura.

Ao tempo em que nas gamelas de pau d'arco e de angico, o bom melaço dava forma definitiva à rapadura.

Garapa e tiborna no parol e nos tonéis de madeira do alambique sob os olhares experientes do mestre Pedro.

Os ventos frescos e adocicados, além da fumaça no ar de todo dia eram, por assim dizer, a incorporação quase factual do mito de Prometeu e Sisifo a se espalhar pelos baixios de cana.

Mas à frente, o povoado... os bodegueiros, o quadro da feira e a capelinha ancestral de Santo Antônio, o padroeiro.

Fartas águas das nascentes das Barreiras: sangue na veia dos canaviais.

E de verdade, a menina estava feliz. O mundo não era assim tão grande. E viver tão somente se constituía como um detalhe a mais, na ligeira e abundante perspectiva da verdadeira felicidade.

A menina de repente cresceu, se fez guerreira e aprendera ser feliz por si mesma e para todo o sempre.

Enfim, a força da memória venceu o esquecimento total.

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