Extraído facebook - página do pesquisador Guilherme Machado
Bem, meus senhores, não vou contar pra vosmecês, bem toda a minha vida e nem todo o meu sofrimento. Dou uma explicação... Meus pais eram José Cazuza e Maria Ana da Conceição, eram alagoanos e vieram para o Juazeiros em 1904. Chegando aqui foram morar no Sítio Baixio Verde, mas o meu batizado foi em Juazeiro e quem me batizou foi o meu Padrinho Cícero. Quer dizer que eu sou de Juazeiro, que no lugar onde a gente se batiza é que é o natural da gente.
Nasci cego e fui me criando no sofrimento, na obrigação de pedir esmolas, o que eu achava muito ruim... Pedi à deus que me desse uma luz, um seguimento, para eu deixar esta vida de “porta em porta . Quando foi no ano de 1929 um tio meu comprou e me deu uma rabequinha. Bem, eu fui tentando, tentando, comecei a aprender...Ai nosso Senhor me deu este dote de eu pegar em cantoria. Meu irmão sabia assinar o nome e lia pra mim os versos dos “rumances”...Lia uma quadra e eu decorava, lia outra quadra e ei decorava... Eu já cheguei a cantar mais de 75 “rumances”...Primeiro aprendi os versos do “Preguiçoso”, depois desenbestou: “Princesa Rosa”, “Pavão misterioso”, “Negrão André Cascadura”, “João de Calais”, “Zezinho e Mariquinha”, “Juvenal e o dragão”, “O papagaio misterioso”, “O valente Vilela”, “O Capitão do navio”, “Coco verde e melancia”, “A peleja de Zé Pretim com Cego Aderaldo”... Era um mundo de poesia...Aprendi também muitas cantigas bonitas. Eu aprendia com o povo, nesse tempo não tinha rádio e essas coisas modernas que tem hoje. O povo cantava e eu aprendia. Tinha muita música bonita, de amor, de gracejo, de causos de valentia, de reinos encantados... Essas músicas navegavam no mundo. Eu toquei muito nos reisados, depois perdi o gosto... Um menino que eu tinha brincava nos reisados, quando foi um dia ele morreu e eu perdi o gosto pelos reisados.
Eu também tinha muito interesse em tocar “pife”. Quando eu ia para uma festa, a coisa mais bonita que eu achava era uma banda cabaçal. Eu me interessei e aprendia tocar “pife”, eu tocava o tempo todo, chegava a tocar um dia mais uma noite. Mas depois eu peguei mesmo foi na vida de cantoria, com a rabeca... Comecei a cantar nas feiras, em todo lugar onde eu fosse convidado. Eu cantava em casamento, em batizado, em aniversário, em festa de renovação dos Santos e até em sentinela de defunto... O defunto estirado na sala e a gente arrodeado, cantando... Eu achava era bom uma sentinela. O povo tomava muita cachaça, era a noite inteira à custa da cachaça para agüentar a função. As “incelença” era assim:
“Uma incelença
Nossa Senhora das Dores,
Os anjos lá no céu
Estão cantando louvores
Só foi quem mereceu
Esta capela de flores
Duas incelença
Nossa Senhora das Dores”
Cantava até completar as doze “incelença”. A vida de cantador foi a melhor que eu já achei, porque trabalhar no pesado eu não posso, pegar no alheio eu não vou. Assim vou cantando... É como eu digo:
“Essa minha rabequinha
É meus pés, é minha mão
É minha roça de mandioca,
É minha farinha, o meu feijão’
É minha safra de algodão
Dela eu faço a profissão
Por não poder trabalhar,
Mas ao Padre fui perguntar
Se cantar fazia mal
Ele me disse: Oliveira,
Pode cantar bem na praça,
Porém se cantar de graça
Cai em pecado mortal”
Quando eu era novo era bom demais. Eu chegava numa festa e me juntava mais os companheiros, a gente tocava rabeca, “pife”e zabumba...Bebia cachaça e pintava o sete. Eu cantei com muitos cantadores afamados do sertão, fiz muita cantoria e muito desafio. Uma vez o poeta Zé Mergulhão tava me aperriando numa cantoria, com versos malcriados querendo me encourar... Então eu cantei:
“Poeta Zé Mergulhão
Você procure a defesa
Eu lhe dou a explicação
Com toda a delicadeza
Eu com a rabeca na mão
Eu canto por precisão
E você por sem-vergonheza”
Hoje eu estou ficando velho, ficando distraído das coisas. Já esqueci muitos versos...A profissão hoje em dia não dá mais pra quase nada, a gente quase não recebe mais encomenda de cantoria. Ainda canto um pouquinho nas romarias, enquanto houver romaria eu ganho um pouquinho que dá pra viver. Antes de chegar esses programas de rádio, esses violeiros modernos, eu era convidado pra tudo que era canto, pra toda a região. Tinha dia de sábado para eu ser convidado pra cantar em quatro casamentos e não dava vencimento... Essas cantorias do rádio foi quem derrubou eu e muitos outros cantadores como eu.
Na profissão de cantoria eu já viajei pra São Paulo, pro Rio de Janeiro, pra Fortaleza... Eu já cantei na televisão, mas ao invés de melhorar, ficou pior. Quando é no tempo da romaria, eu to tocando a minha rabequinha, aí chega um romeiro e fica olhando e diz:
“-Ah! Esse cego eu já vi, ele passou na televisão. Não dê esmola a ele não que ele é rico, ele vive passando na televisão.
Pois bem, e o pobre do besta aqui passando necessidade. Eu passo é de ano sem ver um pedaço de carne no prato.
A vida, no meu entendimento, é esta luta que a gente leva. Deus é todo poderoso e é quem manda no destino de todos nós. Eu acredito na vida do outro mundo, mas ninguém sabe como é... Agora, o que eu digo é o seguinte: do céu não vem carta, nem telegrama, nem telefone pra seu ninguém.
Uma vez eu fui cantar num casamento, quando foi na hora de eu esbarrar a cantoria, eu cantei uma “despedida” tão bonita que, quando terminei, uma mulher disse:
-Faz pena um “home”desse ter que morrer um dia. Mas eu não tenho medo da morte, não tenho um “tico” de medo da morte. Não tenho medo da morte e nem medo de deixar o mundo. Eu não tenho o que deixar...Se eu morrer é como se diz:
“Eu vou me embora
Vou cantar gulora”
(Cego Oliveira)
Depoimento ordenado a partir de entrevistas concedidas para o filme “Cego Oliveira-Rabeca & Cantoria”do cineasta Rosemberg Cariry.
Vou cantar gulora”
(Cego Oliveira)
Depoimento ordenado a partir de entrevistas concedidas para o filme “Cego Oliveira-Rabeca & Cantoria”do cineasta Rosemberg Cariry.
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