Por: Rangel Alves da Costa(*)
OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - II
Afirmo, sem
medo de errar, que a maioria da população atual de Poço Redondo não sabe dizer
quem foi Zé de Julião e muito menos o cangaceiro Cajazeira; não lembra mais de
Sila ou de Adília e nem sabe o que significaram na história do cangaço; não
conhece nada sobre a participação de Mané Félix ou de outros coiteiros e
cangaceiros naquele período de lutas sem vitórias. Parte da história de Zé de
Julião, por exemplo, só foi conhecida com as filmagens de “Aos ventos que
virão” na região. E assim mesmo completamente distorcida, irreal.
Hoje em dia,
por exemplo, se perguntar a algum morador quem foi Durval Rodrigues Rosa, logo
terá como resposta o falecido líder político, ex-prefeito, valoroso sertanejo
reconhecido por todos na região. Mas ninguém o recordará como o rapazote em
cujas terras ribeirinhas da família Lampião foi chacinado, e muitos menos
daquele que conhecia todos os segredos envolvendo a participação de seu irmão,
o coiteiro Pedro de Cândido, na trama que culminou com a tragédia cangaceira.
Adília e Sila
Mesmo
meninote, Durval rondava o coito e também ajudava o irmão coiteiro naquilo que
o bando ali refugiado necessitasse. Porém, nunca gostou de relatar em detalhes
o que sabia. Questioná-lo sobre aquelas verdades escondidas era o mesmo que
adentrar num sombrio labirinto. Verdade é que faleceu levando consigo a
sentença de absolvição ou de condenação do irmão Pedro de Cândido, acusado de
traição a Lampião e seu bando.
Soa até como
contrassenso que tenha acontecido assim, mas a verdade é que pessoas estranhas
ao seu meio os tenham valorizado e reconhecido muito mais do que aqueles
conviventes sob o mesmo chão. Enquanto os sertanejos se mantinham afastados,
ignorando aquelas vidas recheadas de feitos - para o bem ou para o mal -,
outros chegavam de muito distante ávidos para lançá-los o olhar e a palavra. E
ouvir, acima de tudo.
E em Poço
Redondo, município do sertão sergipano que forneceu mais de duas dezenas de
filhos seus ao bando mais famoso de cangaceiros e em cujo solo, na Gruta do
Angico, coito às margens do Velho Chico, Lampião e mais nove companheiros foram
chacinados a 28 de julho de 38, sempre foi marcante a indiferença das pessoas
com relação aos seus irmãos de luta. A par dos já citados, os exemplos se
avolumam.
Não se conhece
bem os motivos de ter acontecido assim. A maioria dos ex-cangaceiros nunca
gostou de ser reconhecido como tal, de ser relembrado pela sua trajetória
catingueira. Por trás disso tudo o temor que permaneceu por muito tempo, como
se ainda estivessem sendo perseguidos pela polícia, tivessem que ser chamados a
prestar contas às autoridades, serem vítimas de vinganças ou problemas não
resolvidos desde outros tempos.
As
perseguições policiais existiram mesmo, é verdade. Muitos caçadores de
cangaceiros, talvez ainda não satisfeitos com os acontecimentos de Angico,
continuaram perseguindo aqueles que conseguiram sobreviver à chacina. Não
bastou, como alguns fizeram, que se entregassem à polícia. E não porque as
perseguições continuaram com uma feição de pessoalidade, de acerto de contas de
indivíduo para indivíduo, da polícia contra o ex-cangaceiro. O “ex” era a senha
maldita. O sargento Deluz, por exemplo, fez fama nesse encalço aterrador,
agindo com desmedida perversidade.
Zé de Julião,
alcunhado de Cajazeira no bando de Lampião, foi um exemplo claro de que as
perseguições pessoais continuaram existindo mesmo após a chacina de Angico.
Perdeu sua esposa Enedina no fogo, porém conseguiu escapar. E daí em diante se
viu muito mais encurralado do que nos tempos de luta aberta. Contudo, a
história registra que outros fatores interferiam para a continuidade das
perseguições.
Ser
ex-cangaceiro era apenas a desculpa para o prosseguimento dos encalços, vez que
contra ele pesavam outras desavenças, até mesmo de antes de entrar para o
bando. Um dos motivos para que ele enveredasse no mundo cangaceiro foi
exatamente o repúdio contra as ações violentas da polícia contra os inocentes
sertanejos, aliadas às repetidas extorsões e ameaças. Talvez a polícia não
houvesse esquecido aqueles arroubos de indignação de um filho de um fazendeiro
de então. Por isso aproveitou-se da ocasião para testar a sua força.
Mas a verdade
é que as perseguições policiais contra o ex-cangaceiro passaram a ter outras
motivações. Ter participado do bando era apenas uma desculpa de fachada. O que
realmente pesou contra ele foi o fato de ter se mostrado disposto a enfrentar
politicamente os poderosos da região. E quando disse que seria candidato a
prefeito, então a coisa pegou fogo para o seu lado. Daí ter sido forçado a
viajar para o Rio de Janeiro. Ao retornar e se lançar novamente candidato
continuaram as perseguições. Até ser assassinado, já nas terras de Poço
Redondo, quando mais uma vez regressava do exílio forçado.
Zé de Julião ou Cajazeira
Como
demonstrado, não era vão o temor demonstrado pelos ex-cangaceiros. E mesmo
muitos anos depois, quando já não se falava mais daqueles acontecimentos de
Angico nem de qualquer investida policial contra eles, ainda assim permaneceram
arredios, amedrontados, só aceitando falar quando conhecia bem quem os
procurasse. E até mesmo Alcino, uma forte liderança local, iniciou suas
pesquisas tendo grandes dificuldades para contar com a colaboração daquelas
pessoas.
Esse
afastamento dos ex-cangaceiros e coiteiros se justificativa por si mesmo.
Estavam exercendo um legítimo direito de proteção pessoal e de não querer fuçar
em cinzas de fogo adormecido. Contudo, o que não se justifica é que a população
de Poço Redondo, conhecendo cada um e sabendo de sua passagem pelo cangaço,
tenha se mostrado tão alheia a esse povo combatente e com uma história tão
pujante. E não conhecer o acontecido nos limites de onde vive revela ainda mais
o descaso com o passado e com o que lhe deu feição de importância.
Vejo como
descaso, desvalorização mesmo, estar na presença de Adília, pessoa que entrou
no cangaço ainda adolescente, companheira de Canário e irmã de Delicado, e
avistá-la como pessoa comum. E assim acontecia. E o fazendo estavam, também,
renegando a história, o passado, as lutas sangrentas que ainda ecoavam pelas
moitas catingueiras. E certamente ainda ressoam por aquelas brenhas de sol e
espinhos.
Para a maioria
dos poço-redondenses era como se nada daquilo tivesse acontecido, era como se
aquelas pessoas jamais tivessem sido comandadas por Lampião ou arriscado a vida
para não deixar nada faltar aos revoltosos. E vejo total desacerto nessa
postura de indiferença. Heróis ou bandidos, justiceiros ou vermes sanguinários,
fossem como fossem, verdade é que eram pessoas distintas, e, como tais,
personagens de um mundo onde a força sertaneja foi colocada a toda prova.
Continua...
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras
do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol".
Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos
Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Pois bem Professor Mendes: Estive parabenizando o Escritor Rangel por mais um dos seus bons artigos - OS ESQUECIDOS. Olhando bem, podemos notar que mesmo depois de abandonar o cangaço, ainda existiam perseguições aos jovens que pelos diferentes motivos, mergulharam de cabeça no mundo dos cangaceiros, como foi o caso de Zé de Julião.
ResponderExcluirEu conhecia um pouco da história do referido ex-cangaceiro. Agora -com a matéria escrita pelo Dr. Rangel -, sei que vou conhecer melhor. Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.