Por Honório de Medeiros
A cruz de
aroeira, carcomida pelo tempo – teria quase oitenta anos, repousa sob uma
plataforma de tijolos grosseiros que alguma alma caridosa houve por bem
construir à margem da muito antiga estrada do cajueiro, que liga Limoeiro a
Mossoró. Originariamente, percebe-se facilmente, a cruz estava plantada
diretamente no solo calcário. Hoje, inclusive, existe uma pequena cavidade por
trás da cruz, construída com tijolos, talvez para receber velas.
Um pouco à esquerda, uma oiticica centenária zomba da fragilidade humana derramando sua sombra testemunha daquele dia fatídico. Mais além, um denso mar de algarobas, marmeleiros, juremas, mufumos, todos acinzentados pelo pó que o vento quente revolve, dá uma precisa noção do tipo de homem que é capaz de enfrentá-lo: o sertanejo!
Um pouco à esquerda, uma oiticica centenária zomba da fragilidade humana derramando sua sombra testemunha daquele dia fatídico. Mais além, um denso mar de algarobas, marmeleiros, juremas, mufumos, todos acinzentados pelo pó que o vento quente revolve, dá uma precisa noção do tipo de homem que é capaz de enfrentá-lo: o sertanejo!
Ali estava sepultado um tipo de sertanejo que já não existia mais. Pelo menos como nos moldes de antigamente. Um cangaceiro. Menino de Ouro? Alagoano? Dois de Ouro? Az de Ouro? Não é provável que sejam os dois primeiros, por que há relatos de fontes primárias quanto à presença deles em episódios posteriores envolvendo o cangaço. A dúvida é: qual dos dois restantes? Dois de Ouro ou Az de Ouro? Se obedecermos à ciência, que nos manda respeitar o testemunho de quem presenciou os fatos, a tendência é que tenha sido Dois de Ouro.
Naquele dia fatídico, fugindo a passo acelerado de Mossoró, onde perdera Colchete e Jararaca, Lampião carregava consigo, tomado por dores cruciantes, esse cangaceiro que teria sido atingido por uma bala que lhe destruíra o nariz. Bala essa disparada por quem guardava os fundos da casa do Coronel Rodolpho Fernandes, respondendo ao ataque desferido sorrateiramente por comandados de Massilon, enquanto Jararaca, Colchete, e outros, ensandecidos por cachaça e adrenalina, distraiam os defensores postados à frente do casarão do Prefeito.
Lampião já parara em uma casa humilde – esse episódio é por demais conhecido – e obtivera água e sal para lavar o ferimento. Coberto de sangue, com a cabeça envolvida por um lenço sujo, o cangaceiro, entretanto, não conseguia continuar. E, à sombra da oiticica, decidiu morrer. Pediu que lhe matassem – não queria continuar. Fera tinha sido, fera era, morreria como fera. Nisso se assemelhava a qualquer samurai, que vivia para morrer, órfão do culto à batalha, às armas, e à violência.
Após muita discussão um tiro reboou no silêncio pesado da caatinga. Um seu companheiro o executou e o sepultaram em cova rasa.
No entorno da sepultura há muitas pedras – calcário. São pedras milenares. Testemunharam tudo. Pudessem relatar o que viram e ouviram contariam a nós acerca daquele momento tenebroso. Saberíamos, talvez, quem de fato teria sido o cangaceiro executado a pedidos. Diriam a nós um pouco mais acerca desses homens-feras que não temiam a morte, a sede, a fome, caminhadas sem fim por sobre um chão inóspito, debaixo do sol inclemente, fendendo a braçadas a caatinga áspera.
Não temiam os inimigos naturais – as volantes, os “macacos”, a resistência, quando havia, dos habitantes do Sertão a quem atacavam. Não temiam a traição permanente dos coiteiros e coronéis com os quais constituíam essa página da história do Brasil recém-saído da monarquia. Não temiam a morte. Não temiam nada.
Para esse cangaceiro desconhecido deixamos nossa perplexidade, algumas orações, muitas perguntas não respondidas e uma vela acesa, solitária, com a chama a teimar, trêmula, em sobreviver lutando contra o vento quente do Sertão.
Passados todos esses anos, quase um século, sua lembrança sobrevive na curiosidade de alguns apaixonados pela história do cangaço, coronéis, cantadores de viola, repentistas, místicos, jagunços, fanáticos, almocreves, todos que construíram a saga dos antepassados fundadores da cultura sertaneja nordestina, na terra sagrada por onde perambulou Lampião, Padre Cícero, o Coronel Zé Pereira e o grande, talvez o maior de todos, Zé Limeira, o poeta do absurdo...
* Arte de Gabriel Ribeiro
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Pois é caro Mendes, este texto de autoria do historiador Honório de Medeiros, deixa evidente que até para morrer, aqueles jovens sertanejos eram portadores de extraordinária coragem.
ResponderExcluirTambém eu não tinha a informação que entre Mossoró e Limoeiro havia morrido um cangaceiro. Para mim, as mortes seriam apenas Colchete e Jararaca. Sempre estou aprendendo com vocês e as vossas experiências.
Abraços para você e o professor Medeiros.
Antonio José de Oliveira - Povoado Bela Vista - Serrinha - Ba