Por Guilherme Pereira - Jornalista
Zé do Telhado,
titular da Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, permanece no
imaginário popular como um assaltante que roubava aos ricos para dar aos
pobres. O mito e as lendas têm servido para ocultar um processo judicial feito
de mentiras e provas forjadas.
Na campa, onde
jaz, consta uma data de nascimento igualmente falsa. As quadrilhas integravam
padres, morgados, administradores, empresários e alfaiates. Nunca foram
julgados. A História reconduz-nos a julgamentos recentes, alguns dos quais da
actualidade...
Na noite de 16
para 17 de Março de 1857, Zé do Telhado é já alvo de uma caça ao homem sem
precedentes. Tinha renovado a quadrilha, agora constituída por Zé do Telhado e
o irmão Joaquim, António da Cunha, o Silva mestre pedreiro, a senhora Tomásia,
Joaquim Pinto e a mulher, donos de uma estalagem , o Morgado António Faria, o
padre Torquato José Coelho Magalhães, o alfaiate Miguel Exposto, o Morgado da
Magantinha(António Ribeiro de Faria) e o administrador Albino Leite.
Zé do Telhado
resolve pernoitar em Amarante, cujo administrador, José Guedes Cardoso da Mota,
fora avisado que o fugitivo passaria a noite na casa de Manuel Teixeira, do
Sardoal.
Cabos de
ordens, tropas de caçadores e regedores das freguesias são mobilizados em peso
para a captura, cujo comando fora confiado ao regedor Alves, de São Gonçalo.
Cercaram a
casa durante a noite. Mal irrompessem os primeiros raios de sol, por imposição
legal, o assalto e as prisões consumar-se-iam. A mulher do dono da casa, quase
de madrugada, apercebeu-se do cerco e tentou alertar Zé do Telhado, entretanto
ocupado a cuidar do visual.
Nas situações
mais dramáticas, o homem cofiava a barba hirsuta, ajeitava o paletó,
empertigava a peitaça frente ao espelho.
Dirigiu-se a
uma janela e interpelou um dos cabos. ”Quem anda aí? – as palavras de Zé
do Telhado rasgaram a noite gelada. A resposta chegou e trazia mau augúrio: ”É
o regedor da freguesia. Por ora não queremos nada, o que queremos será mais
logo”. O foragido dirige-se para o lado oposto da casa e abre outra
janela. ”Tu, que estás detrás do carvalho, sai!.. senão morres!”
Ao grito da
última palavra, colou-se um tiro que aterrorizou a patroa. “Entregue-se,
senhor, que eles não lhe fazem mal” – ajoelhou-se a mulher. Zé do Telhado
nem ouviu. Ao nascer do dia, para surpresa geral, abre a porta de casa e
aparece de peito feito. Desce os degraus e simula que se vai entregar. Em
tropel, a tropa lança-se sobre a criatura. O gesto é fulgurante - recua, entra
de novo em casa, bate com a porta, foge pelas traseiras, galgando um monte.
Os sitiantes
seguiram-lhe no encalço. Sentindo-se perseguido, desfechou um tiro. Depois,
outro. Estava morto o regedor Alves, comandante do pelotão destroçado.
A verdade
histórica confronta-se, hoje, com as versões oficiais e a lenda de José
Teixeira da Silva, nascido em 1818 no lugar do Telhado, freguesia de Castelões
de Recezinhos, concelho de Penafiel.
Aos 14 anos, o
garoto muda de ares e vai residir para casa do tio João Diogo, no lugar de
Sobreira, freguesia de Caíde de Rei, concelho de Lousada. Castrador e tratador
de animais, acolhe o sobrinho, interessado em aprender o ofício. Diogo tinha
vida abastada e deu abrigo a José Teixeira da Silva durante cinco anos.
Agosto quente,
festa da Senhora da Aparecida, 13 de Agosto, dia de folguedo geral no lugar.
José Teixeira descobre o aceno de um lenço branco por detrás de uma janela, na
casa onde morava.
Ana Lentina, a
prima, faltara ao festim. Afogueado, o moço galga o portão e corre para os
braços da prima. Um beijo subtil e cinco palavras de amor selaram uma paixão
que acabaria em casamento e tragédia. Tinha 19 anos.
Pouco depois,
assenta praça no quartel de Cavalaria 2, os “Lanceiros da Rainha”. Corria o mês
de Julho de 1837. Rebenta a “Revolta dos Marechais”, contra o partido dos
setembristas e pela restauração da “Carta Constitucional”. Os lanceiros alinham
com os revoltosos, desbaratados a 18 de Setembro.
O general
Schwalback, líder da insurreição, foge para Espanha e leva José Teixeira, que
se distinguira em combate. A caminho do exílio, o intrépido recebe a notícia de
que o tio, finalmente, abençoara o seu casamento com Ana.
Regressado com
um perdão a Portugal, troca alianças a 3 de Fevereiro de 1845. A 7 de Novembro,
nasce a primeira filha do casal – Maria Josefa.
Grassava no
país uma revolta larvar contra o governo de Costa Cabral. O povo, ajoujado a
impostos e arbítrios, aproveita a publicação da “Lei de Saúde Pública”- que
proíbe os funerais nas igrejas e impõe aos cadáveres um exame por mandatários
do governo, em detrimento dos cirurgiões locais – e amotina-se por todo o Minho
contra as “papeletas da ladroeira”.
Estala a 23 de
Março a “Revolução da Maria da Fonte”, liderada por mulheres. As quatro
cabecilhas da revolta são presas dois dias depois, mas o rastilho espalha-se a
Trás-os-Montes.
Há soldados
que desertam para o lado dos insurretos. Chaves adere, depois Póvoa de Lanhoso,
Vila Real, Guimarães. Centenas de revoltosas são presas pelos soldados e
libertadas por companheiras.
José Teixeira
foi o líder militar da insurreição, à qual aderiram pés descalços e o
General-Visconde de Sá da Bandeira, às ordens de quem fica o sargento Silva.
Logo se distingue na expedição a Valpaços.
Os actos de
bravura, despojamento, apurado instinto militar, num combate que perdeu,
valeram-lhe a mais alta condecoração que ainda hoje vigora em Portugal: a ”Ordem
da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito”.
O pior viria
depois.
Derrotado, aconchega
a condecoração, tira as divisas de sargento e voa como um pássaro para os
braços da mulher e dos cinco filhos. Os vencedores atacaram a canalha. José
Teixeira é perseguido, atola-se em dívidas por impostos que não consegue pagar
e é expulso das Forças Armadas.
Não há quem
lhe dê ofício, a todas as portas bateu – todas se lhe fecharam.
Assim nasce o
Zé do Telhado que faria lenda.
Nesse tempo,
Custódio, o “Boca Negra”, capitaneava a maior quadrilha de bandoleiros que
aterrorizou as duas beiras em 1842. Conhecia, de gingeira,as façanhas militares
de José Teixeira.
Ferido num dos
assaltos, “Boca Negra” leva Teixeira a um casario meio abandonado onde se
acoitava o bando. Apresentam-se à luz da vela - o “Tira-Vidas”, “O Girafa”, o
“Sancho Pacato” o “Veterano” e o “Zé Pequeno”. Para o assalto do dia seguinte,
“Boca Negra”, o líder ferido, informa a quadrilha que José Teixeira o
substituiria no comando.
A bola de neve
cresceu, imparável.
Zé do Telhado
faz e reorganiza quadrilhas, ganha fama de generoso e audaz pelas vítimas que
escolhe para os assaltos e o destino do dinheiro ou das jóias – os desgraçados
com que se cruzava e, antes de tudo, a “ minha rica mulher e os queridos
filhinhos”, como os viria a chamar, mais tarde, ao companheiro de prisão Camilo
Castelo Branco.
A fama do
bandoleiro atravessa o país. O temido Zé do Telhado emite, aos que estimava, um
salvo conduto com a sua assinatura e esta informação:
” O portador
deste salvo-conduto pode passar livremente e mando que o ajudem quando for
preciso”.
Com as
autoridades no seu encalço por todo o país, mil vezes o cercaram, mil vezes se
escapuliu o tenebroso. Vendo-se perdido, decide fugir para o Brasil.
Escondeu-se na barca “Oliveira”, acostada no Porto, onde lhe dera guarida nos
últimos três dias Ana Vitória, uma das suas vítimas que passou a idolatrá-lo e
sobre quem disse haver pessoas “de bem que nunca deram às classes humildes um centésimo
do que lhes deu Zé do Telhado.” Desarmado e a horas de zarpar, Zé do Telhado é
preso no esconderijo, a 5 de Abril de 1861.
Às dez da
manhã do dia 25 de Abril, começa no tribunal de Marco de Canaveses o julgamento
de José Teixeira da Silva.
No dia 27, às
duas da madrugada, o júri, presidido pelo juíz António Pereira Ferraz,
considerou Zé do Telhado culpado da prática de doze crimes. Roubos, um
homicídio, organização de quadrilha de assaltantes e a tentativa de evasão sem
passaporte.
“Condeno o réu
José Teixeira da Silva da freguesia de Caíde de Rei, comarca de Lousada, na
pena de trabalhos públicos por toda a vida na Costa Ocidental de África e no
pagamento de custas” – assim determinou o tribunal.
O julgamento,
sabe-se hoje, foi uma farsa. Uma consulta, ainda que superficial, a todos os
documentos oficiais que constam no Tribunal da Relação do Porto e no Arquivo
Distrital do Porto não deixam qualquer margem para dúvidas.
Alguns dos
membros das quadrilhas chefiadas por Zé do Telhado foram arroladas pela
acusação e safaram-se. Morgados, padres, administradores e regedores que tinham
cometido os mesmos crimes do réu nunca seriam acusados ou perseguidos.
Várias
testemunhas de acusação nada viram, de tudo souberam por terem ouvido.
Consta do
processo que António Ribeiro, pedreiro, ”ouviu dizer que fora o querelado José
do Telhado a roubar”. Alexandre Nogueira, comerciante, “não sabe que armas
feriram o regedor se as do querelado se as dos sitiantes”. António da Silva,
lavrador, “soube pelo ouvir dizer do padre roubado que o Zé do Telhado fora um
dos que penetrara dentro da casa armado e isto tem ouvido ao povo”. Manuel de
Sousa, lavrador, disse que “ sabe por ser bem público que tivera lugar o roubo
de que se trata no dia pela forma que nos autos se declara”. Timóteo José de
Magalhães, lavrador, “ disse que sabe pelo ter ouvido ao povo que tivera lugar
o roubo de que se fala nos autos”. Francisco Moreira da Cunha, lavrador, “ouviu
dizer e ser público e notório que o réu José Teixeira e o irmão estavam para
embarcar para o Brasil”.
Só um tiro
sairia pela culatra à acusação. Francisco António de Carvalho, lavrador,
afirmou que “ o Zé do Telhado pagava crimes que não tinha cometido e ouviu
dizer que se havia combinado com o administrador do concelho para imputar os
dois crimes de roubo ao Zé do Telhado”.
Os
quadrilheiros nobres evadiram-se para o Brasil, como sucedeu com o padre
Torcato, ou colaboraram com a acusação, a troco da ilibação. O historiador
Campos Monteiro analisou os autos e emitiu um parecer a este respeito:
“ É de crer
que nesta altura se movimentassem altas influências tendentes a ilibar estas
parelhas de bandidos engravatados. O facto é que saíram em liberdade. E é
natural que o administrador, ao mesmo tempo que os inocentava, procurasse
aproveitá-los ”.
O caso da
ilibação do Morgado da Magantinha está igualmente documentado nos autos. Após a
fuga do padre Torcato, a acusação subornou a testemunha António Eliziário que,
perante o juíz, afirmou saber que “Margantinha foi um dia convidado pelo padre
Torcato a ir ter à capela de Santa Águeda e, indo ali, o encontrou com alguns
membros da quadrilha e quatro bois roubados”, pedindo-lhe “ o padre que
tomasse conta dos bois para os vender, mas o Margantinha recusou-se”.
A verdadeira
história do mito Zé do Telhado está mal contada, a começar pela data de
nascimento que lhe é atribuída – na campa aparece 1815, em vez de 1818 – e
culminando no julgamento relâmpago que durou menos de dois dias úteis.
Foram
subtraídas testemunhas indispensáveis, promovidas declarações falsas e
adulterados os critérios de escolha dos jurados. Em vez do sorteio, foram
escolhidos a dedo conhecidos inimigos de Zé do Telhado. Condenado ao degredo,
José Teixeira da Silva desembarcou em Luanda, seguindo para Malange, onde viveu
cerca de um ano.
Palmilhou cada
légua das terras da Lunda.
Fez-se
negociante de borracha, cera e marfim.
Casou-se com
uma angolana, Conceição, de quem teve três filhos. Cresceu-lhe a barba, até ao
umbigo.
Era, para os
angolanos, o “quimuêzo” – homem de barbas grandes.
Viveu
desafogado, financeiramente. As saudades da mulher e dos cinco filhos
levaram-no mais cedo.
Morreu, moído
de remorsos, aos 57 anos.
Sepultado na
aldeia de Xissa, a meia centena de quilómetros de Malange, os negros
ergueram-lhe um mausoléu.
Hoje, fazem-se
romagens à campa do mito.
Os anciãos de
Malange dizem que, embora fosse um homem austero, tinha um grande coração e
nunca deixava cair um pobre.
P.S.1
O julgamento
de Zé do Telhado iniciou-se em 25 de Abril de 1859, com acusação pública em 9
de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado na pena de trabalhos públicos por toda
a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi
mantida pelo Tribunal da Relação do Porto, cujo acórdão de sentença substituíu
a expressão "costa ocidental de África", por "Ultramar".
Por acórdão da
mesma instância, foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a
África Ocidental, que contou desde a data de publicação do Decreto de 28 de
Setembro de 1863.
A condenação
deu como provados os seguintes crimes: tentativa de roubo, na forma tentada, em
casa de António Patrício Lopes Monteiro, em Santa Marinha do Zêzere, comarca de
Baião, homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Ana Victória de Abreu
e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião, roubo na casa de referida senhora (Casa
de Carrapatelo) de objectos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um
conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em
doze contos de reis, ainda que revelasse desconhecer os montantes visto que o
dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu
pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar, roubo em casa do
Padre Padre Albino José Teixeira, de Unhão, comarca de Felgueira, no valor de
um conto e quatrocentos mil reis em dinheiro e ainda objectos de prata e outro,
outro homicídio na pessoa de um correligionário, ferido num confronto com as
autoridades.
Para além de
outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como
autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino
sem passaporte, com violação dos regulamentos policiais.
P.S.2
Este texto será
publicado num semanário de circulação nacional, cujo director me autorizou que
fosse dado em primeira mão a este jornal.
http://www.setubalnarede.pt/content/index.php?action=articlesDetailFo&rec=1603
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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