Por Rangel Alves
da Costa*
Naquele
tempo... Saindo do Deserto da Judeia, aridez temerosa onde fora tentando por
quarenta dias e quarenta noites, Jesus subiu ao monte mais alto dos arredores e
de lá, lançando o olhar sobre as vastidões adiante, apertou os olhos e,
entristecido, espalhou ao vento umas poucas palavras: Eis o deserto do homem.
Terá oásis, mas incessantemente buscará o deserto.
Foram apenas
estas as palavras, mas ecoadas de tal modo que chegaram aos quatro cantos da
terra e até os dias de hoje são repetidas, acrescidas, modificadas. Contudo,
mesmo curtas, continuaram misteriosas para muitos. Até sábios e profetas
discordaram acerca de seu alcance. Assim porque a sabedoria não chega com
conceitos acabados ou definições demasiadamente estreitas, exigindo que o
próprio homem adentre na sua metáfora para decifrá-la segundo o seu compromisso
com aquela realidade anunciada.
Alguns
propuseram que Jesus sentenciara acerca do homem como ser destruidor do que foi
semeado e depois se tornando algoz de sua própria degradação. Outros sugeriram
que aquelas palavras nada mais significavam que o desprezo do homem pela
existência que lhe fora confiada, de modo a tornar seu jardim num campo de
aridez e desolação. E outros e mais outros deram interpretações diferentes às
palavras. Mas qual o verdadeiro sentido daquela pronúncia e sobre a qual os
tempos cuidaram de repassar a cada geração?
Terá oásis,
mas incessantemente buscará o deserto. As palavras se acrescendo em si mesmas.
E de lá de cima o verbo foi semeado nas imensidões dos tempos. No contexto do
oásis e do deserto, ou na sua junção ou disparidade, a sentença que desde então
o próprio homem optou por cumprir. O oásis talvez significando os poderes
conferidos ao ser humano sobre a terra, a sua força transformadora na
existência, a grandiosidade dos elementos colocados à sua disposição. O deserto
talvez significando o descaso ou a omissão perante as riquezas concedidas ou
mesmo as dolorosas consequências pela devastação daquele oásis. Destruindo as
dádivas, somente caminhos difíceis restarão ao homem. Eis o seu deserto, eis o
que insistentemente busca.
Ainda naquele
tempo e depois em todas as eras, a ventania ouviu e logo cuidou de espalhar
entre montanhas e povoações; os galhos e as folhagens ouviram e segredaram aos
pássaros, que saíram cantando os ensinamentos em meio a toda natureza; a terra
árida ouviu e se fez pó para tomar caminho e cimentar a lição bem
distante; as pedras ouviram e guardaram segredo. Eis que as pedras temiam que
palavras tão importantes se perdessem nos sopros fáceis ou fossem deturpadas
segundo os interesses. E prometeram a si mesmas preservá-las para a
posteridade, bem além da idade duradoura da pedra. Mas aquelas poucas palavras
se espalharam de tal modo ainda hoje são ecoadas como um verdadeiro sermão:
“Eis o deserto
do homem. Terá oásis, mas incessantemente buscará o deserto.
Ofereci a
semente, o grão, o leito na terra, o dom do cultivo, a força para o trabalho.
Ensinei a plantar e a colher, pois a terra sempre justa e acolhedora das
necessidades humanas. Mas o que dela resta senão o deserto?
Em meio a
terra fiz nascerem os córregos e os rios, fiz surgir as fontes e os mananciais
de águas cristalinas, fiz com que a sede pudesse ser saciada, o corpo
reconfortado e as sementes e plantas alimentadas. Tudo isso fiz, mas não o fiz
em vão, assim para o desvão humano. Eis que a água que corre ou se acumula é
verdadeiro oásis de vida e não miragem de deserto que leva à morte.
Tudo criei,
tudo dividi, tudo considerei, dei face e feição, coloquei em tudo a perfeição.
Mas nada fiz de pedra ou de ferro, pois sabia que o homem aos poucos procuraria
transformar a sua face e a sua feição. E o fiz de barro duradouro, unido pelo
cimento das virtudes, precisamente para permitir que se moldasse segundo os
desígnios de sua existência. Mas outra coisa o homem não fez senão fragilizar
esse barro e transformá-lo em poeira, o mesmo pó que hoje o atormenta no
deserto.
Criei o ser
humano e dei-lhe o mundo como prova maior de minha confiança e de meu amor, mas
não para que o tivesse como posse egoísta nem como propriedade absoluta, eis
que com o compromisso de compartilhá-lo com os outros seres e elementos que
nele também fiz surgir. Fiz a árvore para conviver com o homem, fiz os rios e
mares para o compartilhamento do homem, fiz os animais e todos os demais seres
para coexistirem com o homem. Nada fiz somente para o homem e nem para que este
se arvorasse do direito de dispor e destruir como e quando quisesse. Quem ou o
que estará ao seu lado quando o seu deserto estiver aos seus pés?
Até mesmo os
desertos jamais existiram assim, tão medonhos e aterradores. Mas hoje se
alastram de tal modo que já estão divisando com os campos que fiz floridos e
verdejantes, já se aproximam das semeaduras, dos jardins, das moradias. E assim
porque o próprio homem cuidou de aumentar sua aridez, aproximá-lo de si e
cultivá-lo com um orgulho difícil de ser acreditado. Vai destruindo o ambiente
que é vida e alimento e abrindo caminhos áridos rumo ao deserto maior.
Avista-se o homem já caminhando fragilizado, sedento, sem rumo. Dei-lhe oásis,
mas sempre prefere o deserto
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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