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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

AFETOS

Por Rangel Alves da Costa*

O que é afeto? Eis a pergunta da menina. Então a mãe respondeu: Carinho. Mas a menina voltou a perguntar: Posso ter afeto sem precisar de carinho? E logo a mãe respondeu: Se tiver amor. A menina voltou a perguntar: E sem carinho ou amor posso ter afeto? E novamente a mãe respondeu: Sim, muito no seu íntimo ainda não foi revelado, mas ainda assim já a faz sentir afeição por coisas que ainda chegarão com carinho e amor.

Após o diálogo a menina saiu pensativa, imaginando mil coisas a respeito do afeto. Entrou no seu quarto e se rodeou daquilo que mais gostava. Espalhou na cama a velha boneca de pano, brinquedos antigos e já com algum tempo sem uso, retratos da família, uma caixinha de música com uma bailarina sempre pronta a levemente girar com o som surgido. Depois disse a si mesma que jamais se separaria daqueles objetos. Acho que sinto afeto por tudo isso, conclui sorridente.

Mas depois olhou para o alto, em seguida para a vidraça da janela embaçada de chuva, e se pôs a viajar em pensamentos. Imaginou-se tomando banho debaixo daqueles pingos, correndo e se jogando na lama, abrindo os braços como se quisesse toda á água do mundo. E em seguida disse: Acho que também sinto afeição pela chuva. Assim também quando se imaginou brincando com um monte de crianças desconhecidas, com línguas e feições diferentes, mas num compartilhamento das velhas amizades. E rematou: Acho que também sinto afeto pelas pessoas.

Isso talvez tenha já com alguns anos, pois ainda hoje a mocinha de repente se vê confrontando os seus afetos. Aqueles afetos presenciais ou que fazem parte de sua história de vida e também aqueles afetos sentimentais ou que causam contentamento à alma, ainda que jamais presenciados ou mesmo surgidos como fantasias da imaginação. Então trazia aos olhos o afeto que sentia pelas flores do jardim e suas brincadeiras ao redor. Mas sentia o coração partir quando recordava do pé de laranja lima do menino Zezé.


Agora, já moça, sabia que tudo não passava de ficção, que aquela árvore frutífera no quintal da família do menino não passava de uma criação literária. Sim, sabia, mas não aceitava que fosse assim. Mesmo adulta, se negava a aceitar aquela história como mera ficção. Por isso mesmo trazia vivos no coração não só o menino como o seu pé de laranja lima. Era um afeto imaginário, porém tão verdadeiro como a própria existência.

Ainda hoje chora ao recordar as palavras do menino quando seu pai tentou lhe enganar acerca do destino de sua árvore amiga: “- Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima. Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá. Agarrei-me soluçando aos seus joelhos. - Não adianta, Papai. Não adianta... E olhando o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas murmurei como um morto: - Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima”.

Jamais esquecia tal passagem já no finalzinho do livro de José Mauro de Vasconcelos, e que foi se transformando em imagens e vozes reais, como se tivesse presenciado a tristeza, o soluço do menino e suas palavras aflitas: “Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima”. Tudo lhe parecia tão real que ela um dia desejou procurar o menino Zezé para saber como se sentia depois daquele triste episódio. Queria ter um pé de laranja no seu quintal para o amigo ali deleitar-se às sombras do entardecer.

Não era outro sentimento senão afeto o que sentia por Zezé e seu pé de laranja lima. Eis que os afetos surgem assim, dos desejos do coração e da importância que se dá às grandes e pequenas coisas. O afeto familiar, o afeto pelo pássaro que costuma pousar ao umbral da janela, pela borboleta arco-íris que se acha dona do quarto. Um afeto assim como aquele do jardineiro que se viu sem flores e por isso mesmo chorou ante o jardim destroçado. Ou como aquele afeto pela velha fotografia na parede. Feições distantes que se aproximam nas lágrimas e permanecem afetos pelo amor sentido.

Assim os afetos. E não precisa nem afirmar que os sente. Tantas vezes basta um afago, um cafuné, um olhar carinhoso. Outras vezes apenas a recordação para se confirmar o quanto os sentimentos sabem escolher o que desejam afetuosamente eternizar. E é fácil reconhecê-los, pois cada conhece bem o que ama, ao que se dedica, ao que sente ternura.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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