Por Rangel Alves
da Costa*
O que é afeto?
Eis a pergunta da menina. Então a mãe respondeu: Carinho. Mas a menina voltou a
perguntar: Posso ter afeto sem precisar de carinho? E logo a mãe respondeu: Se
tiver amor. A menina voltou a perguntar: E sem carinho ou amor posso ter afeto?
E novamente a mãe respondeu: Sim, muito no seu íntimo ainda não foi revelado,
mas ainda assim já a faz sentir afeição por coisas que ainda chegarão com
carinho e amor.
Após o diálogo
a menina saiu pensativa, imaginando mil coisas a respeito do afeto. Entrou no
seu quarto e se rodeou daquilo que mais gostava. Espalhou na cama a velha
boneca de pano, brinquedos antigos e já com algum tempo sem uso, retratos da
família, uma caixinha de música com uma bailarina sempre pronta a levemente
girar com o som surgido. Depois disse a si mesma que jamais se separaria
daqueles objetos. Acho que sinto afeto por tudo isso, conclui sorridente.
Mas depois
olhou para o alto, em seguida para a vidraça da janela embaçada de chuva, e se
pôs a viajar em pensamentos. Imaginou-se tomando banho debaixo daqueles pingos,
correndo e se jogando na lama, abrindo os braços como se quisesse toda á água
do mundo. E em seguida disse: Acho que também sinto afeição pela chuva. Assim
também quando se imaginou brincando com um monte de crianças desconhecidas, com
línguas e feições diferentes, mas num compartilhamento das velhas amizades. E
rematou: Acho que também sinto afeto pelas pessoas.
Isso talvez
tenha já com alguns anos, pois ainda hoje a mocinha de repente se vê
confrontando os seus afetos. Aqueles afetos presenciais ou que fazem parte de
sua história de vida e também aqueles afetos sentimentais ou que causam
contentamento à alma, ainda que jamais presenciados ou mesmo surgidos como
fantasias da imaginação. Então trazia aos olhos o afeto que sentia pelas flores
do jardim e suas brincadeiras ao redor. Mas sentia o coração partir quando
recordava do pé de laranja lima do menino Zezé.
Agora, já
moça, sabia que tudo não passava de ficção, que aquela árvore frutífera no
quintal da família do menino não passava de uma criação literária. Sim, sabia,
mas não aceitava que fosse assim. Mesmo adulta, se negava a aceitar aquela
história como mera ficção. Por isso mesmo trazia vivos no coração não só o
menino como o seu pé de laranja lima. Era um afeto imaginário, porém tão
verdadeiro como a própria existência.
Ainda hoje
chora ao recordar as palavras do menino quando seu pai tentou lhe enganar
acerca do destino de sua árvore amiga: “- Depois tem mais. Tão cedo não vão
cortar o seu pé de Laranja Lima. Quando o cortarem você estará longe e nem
sentirá. Agarrei-me soluçando aos seus joelhos. - Não adianta, Papai. Não
adianta... E olhando o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas
murmurei como um morto: - Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que
cortaram o meu pé de Laranja Lima”.
Jamais
esquecia tal passagem já no finalzinho do livro de José Mauro de Vasconcelos, e
que foi se transformando em imagens e vozes reais, como se tivesse presenciado
a tristeza, o soluço do menino e suas palavras aflitas: “Já cortaram, Papai,
faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima”. Tudo lhe parecia
tão real que ela um dia desejou procurar o menino Zezé para saber como se sentia
depois daquele triste episódio. Queria ter um pé de laranja no seu quintal para
o amigo ali deleitar-se às sombras do entardecer.
Não era outro
sentimento senão afeto o que sentia por Zezé e seu pé de laranja lima. Eis que
os afetos surgem assim, dos desejos do coração e da importância que se dá às
grandes e pequenas coisas. O afeto familiar, o afeto pelo pássaro que costuma
pousar ao umbral da janela, pela borboleta arco-íris que se acha dona do
quarto. Um afeto assim como aquele do jardineiro que se viu sem flores e por
isso mesmo chorou ante o jardim destroçado. Ou como aquele afeto pela velha
fotografia na parede. Feições distantes que se aproximam nas lágrimas e
permanecem afetos pelo amor sentido.
Assim os
afetos. E não precisa nem afirmar que os sente. Tantas vezes basta um afago, um
cafuné, um olhar carinhoso. Outras vezes apenas a recordação para se confirmar
o quanto os sentimentos sabem escolher o que desejam afetuosamente eternizar. E
é fácil reconhecê-los, pois cada conhece bem o que ama, ao que se dedica, ao
que sente ternura.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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