*Rangel Alves
da Costa
Com uma placa
deitada sobre o corpo, como num colete de salva-vidas, João Filisberto da Silva
se mantém em pé, impassível entre os caminhantes do calçadão da João Pessoa, o
dia inteiro, mal parando para o almoço de um real no Padre Pedro. Assim é que é
avistado por todos, conhecidos e desconhecidos, num ofício que jamais imaginou
exercer já envelhecido de tempo. Conta com 72 anos, aposentado por idade,
empobrecido, sem poder usufruir da velhice.
Passando pelo
calçadão, uma garotinha se surpreendeu com aquela estranha e tristonha figura,
e muito mais com os dizeres da placa, e logo questionou à mãe: “Sei que ouro é
muito caro, assim ouvi dizer. Então não sei como uma pessoa assim, com barba
por fazer, roupa já a ponto de rasgar, com cara de quem não possui muita coisa,
e ainda quer comprar ouro”. A mãe, coitada, sem saber muito que comentar, ainda
assim arriscou: “Pobre homem. Não vende nem compra ouro. Acho até difícil ele
comprar qualquer coisa. Passa aí o dia inteirinho com esse anúncio para ganhar
um tostão. O seu ganha-pão é esse aí, carregar isso pra botar margarina no pão
da miséria”.
Mais adiante,
e por todo lugar, moças e moços, senhoras e senhores, gritando a plenos
pulmões: “Olha o chip, olha o chip. Chip da Oi, da Claro, da Vivo, da Tim.
Compre agora e ganhe um bônus. Olha o chip, olha o chip!”. E na babel do
comércio ambulante, outros gritos são ouvidos: “Água mineral, olha a água
mineral geladinha. Mate o calor com água mineral. Olha a água mineral. Um real
um copinho e dois reais uma garrafinha. Olha a água mineral”. E mais: “Capa e
película de celular, quem vai querer. Pulseira da novela, a moda que todo mundo
tá usando, quem vai querer. Carteira, óculos de sol, quem vai querer!”.
Tem de tudo no
calçadão. Logo chega uma mocinha perguntando se não deseja fazer uma consulta
grátis com oculista e ganhar desconto especial na compra dos óculos de grau.
Outra chega oferecendo tratamento dentário barato seja na extração, na prótese
ou no branqueamento. E o doutor dentista fica logo ali, bastando subir numa
escadinha, sem fila sem nada, também aceitando cartão. Por falar em cartão,
alguns vendedores só faltam forçar o caminhante a preencher fichas para cartão
de crédito de lojas específicas. Vão logo dizendo que é certeza de aprovação e
que basta repassar os dados e que eles mesmo providenciam a xerox dos
documentos.
Quem quiser
comprar pode escolher no sortimento do ambulante ou na tenda colocada sobre as
calçadas. A moça grita que tem açaí no copinho, a outra que tem sorvete de
vários sabores. Por todo lado a venda de cartelas para ganhar moto, carro ou
dinheiro. Uma mulher oferece doces e salgados artesanais, o outro se põe no
meio do calçadão e começa a fazer bolha de sabão para chamar a atenção da
criança. Mas esta quer mesmo o que avista adiante: um pássaro de plástico que
voa dois metros para depois se espatifar pelo chão. E acaba chorando porque a
mãe diz que não tem dinheiro pra bugiganga.
Como
estranhíssimas espécies, que chegam em grande monta e depois desaparecem em
revoada, os hippies cabeludos e tatuados tomam as calçadas das lojas fechadas e
espalham seus objetos de venda. Pulseiras, brincos, enfeites, tudo feito em
cipó, latão, couro ou linha colorida. São calmos, quase que silenciosos,
parecendo mesmo ausentes de seus próprios objetos, do comércio e das pessoas
que passam. De vez em quando um toca uma flauta, outro encontra sons
instigantes em vasilhames com água, ainda outro medita como se estivesse num
mosteiro tibetano. Quando indagados, não é raro que respondam num portunhol
arrastado.
Os pedintes
também são muitos. Ainda não desapareceram aqueles que expõem suas fraturas ou
enfermidades para chamar a atenção das pessoas. E acabam causando um efeito não
desejado, pois muitos evitam olhar para a gravidade da situação, seguindo sem
lançar uma só moeda. Já se presenciou discussão e até briga na porta da Capela
do São Salvador, e entre os pedintes que ali penitenciam no dia a dia. “Esse
lugar é meu”, diz uma, ao que a outra responde: “Mas você não é mais pobre do
que eu”. E assim vão estendendo as mãos, ouvindo o tilintar de moedas, sentindo
a insensibilidade da maioria.
Longe o tempo
quando se ouvia “Jornaleiro, olha o jornaleiro”, ou ainda “Pé de moleque, arroz
doce, mungunzá, broa de milho e muito mais”. O leiteiro também não grita que
vai passando, assim também com a vendedora de verduras, de queijo e de frutas
de quintal. Silenciou o som da carroça passando com melancia, abóbora, maxixe e
quiabo. O velho vendeirim de tempero, canela, sal grosso, folhas e raízes
medicinais, gengibre e penca de alho também deixou de passar.
A vida se
modernizou e hoje não se expõe ao comércio ambulante senão aquele empobrecido,
desempregado, com dificuldade até de subsistir. O problema é que em número cada
vez mais crescente. Por isso que as ruas vivem assim, tomadas de vozes que
gritam pedindo socorro. E são cem mil desempregados só em Sergipe.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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