*Rangel Alves
da Costa
Não faz muito
que escrevi um texto relatando sobre o retrato da terra sertaneja ao longo do
tempo, acentuando suas transformações nos últimos anos. Cuidei de avistar um
sertão de mata nativa, rica em fauna e flora, com a pujança de sua peculiar
vegetação, até chegar aos tempos outros onde o próprio homem cuidou de ir
transmudando sua riqueza em desértica nudez. E o que se tem hoje é mais
desalentador ainda, visto que o olho sertanejo não consegue avistar senão a
coivara aberta em terra nua: o sol descendo e abrasando tudo por falta de pá de
pau.
A verdade é
que pouco resta do verdadeiro sertão. Somente o conceito geográfico permanece,
mas ainda assim sem aquelas características descritas nos livros. A catingueira
vive seu desalento de solidão, as cactáceas não são mais avistadas como
outrora. Com a devastação da mataria não restou bicho nem passarinho. Sem tufo
de mato o bicho não tem moradia, sem galho de planta não há ninho de
passarinho. Sem a vegetação a terra fica desprotegida, os riachos secam, o calor
aumenta, a feição desértica torna em fornalha a aridez.
Em seu
contexto maior, a terra em si não se modifica senão pelo desejo da própria
natureza. Se o passado era de abastança de árvores e espécies nativas e hoje
não existe, certamente que não foi a natureza que tirou o seu véu de abundância
para se mostrar desnuda, magricela e feia. Tudo pela mão do homem, pela foice
do homem, pela máquina do homem, pela insensibilidade do homem, pela sua imensa
cobiça de usar e abusar até não restar mais nada.
Certamente
alguém se lembrará da fruta do mato, como a quixaba e o araçá, que noutros
tempos vingavam de encher bacia. Bastava a pessoa enveredar na mataria e não
demorava muito para encontrar o doce negrume ou o saboroso pingo dourado. Hoje
quase não existem mais. Bem assim ocorre com o bicho de caça. Nas vastidões
secas e empobrecidas, sem o que colher pra comer, famílias inteiras sobreviviam
unicamente da presa do mato. Preá, caititu, veado, nambu, perdiz, era presença
constante no fogo de lenha de sertanejo. Hoje em dia nem adianta tocaiar que é
tempo perdido. E não se deve esquecer que o sertão já foi paisagem até de onça
pintada.
Impossível
rebuscar o passado como presença, inimaginável seria ter a continuidade do ido
no passo presente e futuro. Tudo nasce com a validade do seu tempo e depois o
próprio tempo cuida de amarelar o retrato e fragilizar a moldura. Ao olhar o
passado através do que restou na parede da memória, outra coisa não se
encontrará senão o espanto de quase nada mais encontrar daquilo que tão
belamente existiu.
O sertão
possui muitos retratos na parede da memória, mas nenhum parecido com o que se
tem agora. Difícil acreditar, mas o novo, sempre forjado com a promessa de não
apagar o passado, nem de longe parece com os encantos singelos de antigamente.
Enquanto o novo sertão se esmera e se maquia para fugir cada vez mais de sua
real feição, aquele outro sertão encantava pela sua singeleza bucólica, humilde
e verdadeira.
Ninguém
haveria de esperar, contudo, que aquele sertão permanecesse inalterado pelas
forças do tempo. Tudo muda, tudo se transforma. Num tempo distante houve um
sertão intocado, de vegetação nativa se alastrando por todos os quadrantes. Com
o desbravamento e povoamento, os espaços foram divididos entre o novo
habitante, suas criações e o já existente. Entretanto, no processo histórico de
desenvolvimento, coube ao homem reduzir os espaços naturais para ampliar seus
meios de subsistência. Mas os objetivos de exploração econômica foram
devastando a terra sertaneja e fazendo surgir no seu meio um sertão diferente a
cada ciclo.
Tal processo
se constituiu num desenvolvimento predatório. A cada passo de transformação
também o da regressão. A pujança da natureza, das espécies nativas, dos bichos
próprios do bioma caatinga, do homem no seu mundo próprio, tudo isso foi sendo
afetado pelo progresso. Como aconteceu com o Velho Chico, um rio antes pujante
e caudaloso, bastou a chegada da hidrelétrica e tudo afinou de fazer dó. O
ribeirinho restou abandonado perante o seu rio igualmente maltratado, fino e
feio pela sua essência sugada.
São muitos os
exemplos. Até o século passado eram comuns os latifúndios com suas áreas
imensas de terras, muitas vezes mantidos improdutivos, mas garantindo a
preservação natural. E as terras de eréu num período mais longínquo, quando
muitas léguas de terras se mantinham sem dono e estas acabaram sendo transcritas
como de propriedade dos poderosos de então. O latifúndio foi também fruto das
terras de eréu.
Hoje, em nome
da reforma agrária e da distribuição de terras para os que desejam nela
trabalhar, criou-se uma ilusão verdadeiramente depredatória. A rica vegetação
encobrindo léguas e léguas aos pouco foi tombando pela foice e pelo machado,
deixando em campo aberto o mundo da catingueira e do mandacaru, o mundo da
baraúna e do juazeiro. E para nele nada produzir. A pobreza se alastra
impiedosa, não há planta nem fruto, não há quintais nem criações, não há sequer
esperança. O que se tem é um sertão desfigurado e transformado num deserto de
sol e calor.
Escritor
Membro da
Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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