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segunda-feira, 13 de novembro de 2017

VIRGOLINO

Por A Tarde, Rio de Janeiro, 27 jan. 1938

Há dias surgiu por aí um telegrama a anunciar que o meu vizinho Virgulino Ferreira Lampião tinha encerrado a sua carreira, gasto pela tuberculose, deitado numa cama, no interior de Sergipe. Mas a notícia não se confirmou — e a polícia do Nordeste continuará a perseguir o bandido, provavelmente o agarrará de surpresa e mostrará nos jornais a cabeça dele separada do corpo. Seria de fato bem triste que a punição dum indivíduo tão nocivo fosse realizada por uma doença. Ficam, pois, sem efeito os ligeiros comentários inoportunos e apressados, que ilustraram o canard.

Não é a primeira vez que Lampião tem morrido. E sempre que isto se dá as notas com que se estira o acontecimento deturpam a figura do bruto e manifestam a ingênua certeza de que tudo vai melhorar no sertão. O zarolho se romantiza, enfeita-se com algumas qualidades que se atribuíam aos cangaceiros antigos, torna-se generoso, desmancha injustiças, castiga ou recompensa, enfim aparece inteiramente modificado.

Esperamos e desejamos longos anos essa morte — e ao termos conhecimento dela soltamos um suspiro de alívio a que se junta uma espécie de gratidão. Teria sido melhor, sem dúvida, que o malfeitor houvesse acabado nas unhas da polícia. Não acabou assim, desgraçadamente, mas de qualquer forma o Nordeste se livrou dum pesadelo.

Repousamos algum tempo nesse engano, até que Lampião ressurge e prossegue nas suas façanhas. Inútil agredi-lo ou emprestar-lhe virtudes que ele não entende, ajudá-lo, fazê-lo combater os grandes, proteger os pequenos, casar donzelas comprometidas. Lampião não se corrigirá por isso: permanecerá mau de todo, insensível às balas, ao clamor público e aos elogios, uma das raras coisas completas que existem neste país.

Tudo aqui é meio-termo, pouco mais ou menos, somos uma gente de transigências, avanços e recuos. Hoje aqui, amanhã ali — depois de amanhã nem sabemos onde haveremos de ficar, como haveremos de estar. Abastardamo-nos tanto que já nem compreendemos esse patife de caráter e inadvertidamente lhe penduramos na alma sentimentos cavalheirescos que foram utilizados como atributos de outros malfeitores.

Deixemos isso, apresentemos o bandoleiro nordestino como é realmente, uma besta-fera. Há pouco mais de um ano, em condições bem desagradáveis, travei conhecimento com um discípulo dele, um sujeito imensamente forte, alourado, vermelhaço, de olho mau. Esse personagem me declarou que todas as vezes que praticava um homicídio abria a carótida da vítima e bebia um pouco de sangue. Anda por aí espalhada a longa série das barbaridades cometidas pelo terrível salteador, mas essa confissão voluntária dum companheiro dele surpreendeu-me.

Isso prejudica bastante o velho culto do herói, do homem que lisonjeamos para que ele não nos faça mal.

Lampião se conservará ruim. E não morrerá tão cedo. A vida no Nordeste se tornou demasiado áspera, em vão esperaremos o desaparecimento das monstruosidades resumidas nele.

Finaram-se os patriarcas sertanejos que vestiam algodão e couro cru, moravam em casas negras sem reboco, tinham necessidades reduzidas e soletravam mal. No pátio da fazenda uns cangaceiros bonachões preguiçavam. E nos arredores grupos esquivos rondavam, escondendo-se dos volantes. De longe em longe um emissário chegava à propriedade e recebia do senhor uma contribuição módica.

Tudo agora mudou. O sertão povoou-se e continua pobre, o trabalho é precário e rudimentar, as secas fazem estragos imensos. Os bandos de criminosos, que no princípio do século se compunham de oito ou dez pessoas, cresceram e multiplicaram-se, já alguns chegaram a ter duzentos homens. A luta se agravou, as relações entre fazendeiros e bandidos não poderiam ser hoje fáceis e amáveis como eram.

Jesuíno Brilhante é uma figura lendária e remota, o próprio Antônio Silvino envelheceu muito.

Resta-nos Lampião, que viverá longos anos e provavelmente vai ficar pior. De quando em quando noticia-se a morte dele com espalhafato. Como se se noticiasse a morte da seca e da miséria. Ingenuidade.

A Tarde, Rio de Janeiro, 27 jan. 1938

IN: RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.151-154.

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