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domingo, 18 de novembro de 2018

CAÇADAS SAZONAIS... 4. CAÇA DE MARRECA POR ESPERA, COM CHAMAS VIVAS

Por Benedito Vasconcelos Mendes

No inverno (período chuvoso), um dos  principais  passatempo do meu avô, José Cândido Mendes, era a caça de marrecas em tocaia, usando chamas vivas. Ele criava em sua Fazenda Aracati, vizinha a Vila Caracará, no Município de Sobral, no Estado do Ceará, vários casais de marreca-viuvinha (Dendrocygna viduata)  e  de marreca-verdadeira (Dendrocygna autumnalis  autumnalis ), que eram usados como chamas em suas caçadas de tocaia (caçada de espera).                                                                  
As marrecas são aves anseriformes, silvestres, aquáticas (possuem membranas natatórias), gregárias, de carne saborosa e muito usada na culinária sertaneja.     


A marreca-viuvinha é nativa da América do Sul e África, tem cabeça e pescoço brancos, asas, bico e pés cinzentos escuro, mede aproximadamente 35 centímetros, pesa até 850 gramas, alimenta-se de sementes e pequenos invertebrados, nidifica no chão e põe até 12 ovos por postura. Não se reproduz facilmente em cativeiro. No Nordeste é conhecida como marreca-viuvinha e no restante do País por  irerê e marreca-piadeira.                                                                                                                     
A marreca-verdadeira ou marreca-cabocla mede 45 a 55 centímetros e pesa até pouco mais de um quilo. Tem bico e pés vermelhos, sua face é acinzentada e a barriga é preta. Quando em voo apresenta uma mancha branca nas asas,  é  maior do que a marreca-viuvinha, alimenta-se de sementes, vermes, pequenos crustáceos, larvas de insetos e gosta muito de grãos de arroz. É uma ave gregária, podendo formar grandes  bandos. Nidifica no chão, às vezes em ocos de pau, põe de 7 a 15 ovos, gosta de empoleirar-se nos galhos das árvores, das margens de rios, açudes e lagoas. No Nordeste brasileiro, reproduz-se uma vez por ano, na quadra chuvosa.                                                                                                             
Na Fazenda Aracati, estas marrecas nativas eram criadas no oitão da casa grande, em uma área separada por cerca de faxina das outras aves (galinhas, patos, capotes e perus). As marrecas não voavam, pois uma de suas asas tinha sido operada (junta da asa cortada). Além de não voarem, as marrecas eram muito mansas, acostumadas a se manterem amarradas pela canela, por longo período de tempo. Na área de criação das marrecas,  tinha um tanque de alvenaria de 3 m X 2 m e 60 cm de profundidade, para banho e natação das aves. Ao redor do tanque de água, situavam-se os marrequeiros, que eram pequenos chiqueiros de varas de marmeleiro,  cobertos  de palha de carnaúba, onde as marrecas dormiam. Em cada marrequeiro vivia  um casal de marrecas. Dentro deles ficavam o depósito para receber  alimento (milho) e o alguidarzinho de barro,  para  água de beber. Ao meio dia,  as marrecas eram soltas na área comum do tanque, para pegarem sol e tomarem banho juntas. À tardinha, cada casal era colocado em suas casinhas (marrequeiros). As portas eram de varas finas de marmeleiro, com dobradiças de couro cru de boi. Tinham que dormir dentro do marrequeiro, devido às raposas e gambás.                                                                                                                 
Por ocasião da caçada, dois ou três casais de cada espécie de marreca (verdadeira e viuvinha) eram levados  em cestos de cipó com tampas para próximo da tocaia. Elas eram mantidas amarradas  por um cordão grosso de fio de algodão (punho de rede),  com cerca de meio metro de comprimento,  sobre uma laje de pedra  arredondada, de mais ou menos 80 centímetros de diâmetro, colocada dentro d’água.                                                                                                          
No inverno,  quando as lagoas, rios  e açudes já  tinham pegado bastante água,  meu avô e o vaqueiro Sales saiam, ao escurecer, para caçar marrecas, na margem da lagoa. Levavam as marrecas mansas para a beira d’água e amarravam as mesmas nos cordões presos à laje de pedra. A laje arredondada colocada dentro d’água, funcionava como uma ilha, onde as marrecas ficavam presas e em cima dela. A laje era previamente preparada, de modo a deixar várias pontas de cordão para receber as marrecas mansas (chamas).                                                                        
Meu avô e seu auxiliar Sales entravam na tocaia em forma de cone e feita de varas de marmeleiro e palhas de carnaúba. As marrecas mansas, sobre a pedra, na beira d’água, ficavam alegres e querendo descer da pedra para  nadar. Noite clara de lua cheia, silêncio quebrado aqui e ali pelo  coaxar dos sapos e rãs ou pelo canto do caboré ou de algum pássaro noturno aquático. De repente, ao pressentir a passagem de um bando de marrecas voando sobre a lagoa, as marrecas mansas começavam a cantar, chamando as que passavam, para pousar na margem da lagoa. Ao pousarem na área estrategicamente preparada para receber as marrecas selvagens, que distava uns três metros de distância da pedra onde as chamas estavam, meu avô armava sua espingarda, mirava o bando e atirava. Meu avô era o atirador e o Sales era o ajudante. A espingarda usada era do tipo bate-bucha e era espalhadeira de chumbo. Cada tiro matava duas ou três marrecas, às vezes mais. Quando as marrecas feridas caiam dentro d’água, o  Sales,  usando um cavalete de mulungu (tronco de mulungu que funcionava como boia), ia apanhar a ave moribunda ou já morta. O mulungu é leve e não afunda e dele se faz o cavalete (boia).                                                                                                         
As espingardas bate bucha de meu avô eram fabricadas pelo mestre Tião Ferreiro, cuja tenda de ferreiro localizava-se na Vila de Santo Antônio do  Aracatiaçu, que pertencia ao município de Sobral e que ficava próxima de sua fazenda.                                                                                    
As marrecas mansas permaneciam sobre a pedra, chamando novos bandos de marrecas silvestres. Meu avô e o Sales ficavam na tocaia até às 10 horas da noite, depois iam dormir, pois no dia seguinte tinha muito leite para tirar das vacas. Geralmente, ele dava um ou dois  tiros por noite, raramente três, pois, algumas vezes, as marrecas selvagens, que passavam voando sobre a lagoa,  não aterrizavam. Meu avô era um exímio atirador e tinha ótimas marrecas-chama, mansas e chamadeiras, que ele criava com muito zelo.                                                                           
Meu avô, ao chegar em casa com as marrecas mortas, as entregava à minha avó, que mesmo sendo tarde da noite,  ia depenar, tratar e salgar, pois na fazenda não havia geladeira. Minha avó, sob a luz de lamparina a querosene e usando o fogão a lenha, mergulhava as marrecas em uma panela de barro grande com água fervendo, depenava as aves, cortava a cabeça e os pés, retirava as vísceras e colocava-as em uma panela com salmoura de sal grosso pilado até a manhã do dia seguinte, quando as mesmas eram penduradas em uma corda de caroá, amarrada entre dois armadores de rede,  no alpendre lateral da casa. Depois de secar um pouco à sombra, as aves eram preparadas na forma cozida ou frita em banha de porco, e depois servidas  com farinha de mandioca ou cuscuz de milho e arroz. Era um almoço delicioso, que agradava a todos os paladares.

Enviado pelo professor, escritor e pesquisador do cangaço Benedito Vasconcelos Mendes

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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