MAS OS
“CAIBRAS” DO BANDIDO FICARAM EM VOLTA EMPUNHANDO OS RIFLES. SENSACIONAL
NARRATIVA DO BARBEIRO QUE DEPOIS DE CORTAR OS CABELOS DE VIRGULINO FERREIRA,
FUGIU, APAVORADO, PARA O RIO
Rua do Acre,
nº 11. Aí funciona um modesto salão de barbeiro. Meia dúzia de “fígaros” se
entregava afanosamente a escanhoar os rostos de outros tantos fregueses.
O “carioca-repórter” havia prestimosamente informado que ali encontraríamos algo de interessante, com relação a Lampião. Por isso, um repórter, cujas barbas ainda não haviam sido raspadas, ali foi ter e ficou à espera de ser atendido.
Enquanto passava o tempo, como de propósito, alguém falou sobre a morte de Virgulino Ferreira. Dizia:
- Na verdade, jamais acreditei que Lampião existisse de fato. Julgo tudo uma balela!
Replicando-lhe, um dos oficiais falou:
- Isso o senhor pensa. Mas Lampião era mesmo um cangaceiro. Pelo menos temos aqui um colega que já teve ensejo de vê-lo pessoalmente, aliás com muito desgosto, pois é por temos de Lampião que ele veio para o Rio.
O repórter aguçou os ouvidos. Encontrava mais facilmente do que pensava o assunto importante que motivava a sua presença no salão.
Agora, o homem descrente também mostrava curiosidade e quis saber quem era Lampião.
Não foi difícil. O barbeiro não fez segredo e respondeu prontamente, à primeira interpelação:
- É aquele. E apontou para um rapaz, tipo nortista, também entregue ao trabalho de cortar o cabelo a um freguês.
O HOMEM QUE
FEZ A BARBA E CORTOU O CABELO DE LAMPIÃO E SEUS SEQUAZES
Nesse momento
o repórter julgou azada a sua intervenção. Fê-lo de maneira a provocar mais
celeuma em torno do assunto e forçar o esclarecimento de novos detalhes.
O barbeiro que havia apontado seu colega, de fato, prontamente ajuntou:
- Olha, moço, o João de Deus Aragão é baiano e algumas vezes nos falou a respeito de seu encontro, dizendo mesmo que havia sido forçado a fazer a barba de Lampião e seus sequazes. Não foi mesmo, Aragão? – perguntou ao indicado, como a querer confirmação do que afoitamente narrara.
O outro não parecia muito inclinado a falar sobre o assunto e apenas respondeu:
- É.
Insistimos.
- Para que falar nisso?
- E por que não?
Não tenha receio: Lampião está mesmo morto...
João de Deus Aragão sorriu e aquiesceu, então, em fazer-nos a narrativa.
- Foi em 1928 que o fato se verificou – começou. Morava eu então na fazenda Vaz Salgado, Vila do Amparo, no estado da Bahia, onde tinha o meu salão. Nessa época, em uma certa manhã, cerca de 8 de 30 horas, subitamente a localidade foi invadida por um grupo numeroso de homens montados a cavalo, fartamente municiados. Prontamente foram reconhecidos como sendo bandidos de Lampião, o já famoso “terror do cangaço”. Com ele vinham, entre outros cangaceiros, os não menos temíveis “Corisco” e “Esperança”, bem como um cunhado de Virgulino Ferreira, conhecido por Modesto.
A guarnição policial, composta de sargento e três praças, tratou de fugir, logo que circulou a notícia da aproximação dos facínoras, certos de que se ali permanecessem, seriam exterminados sanguinariamente, dado o já proverbial ódio que Lampião tinha aos “macacos”, como chamava aos elementos da polícia.
Penetrando na pequena vila, Lampião tomou de surpresa a coletoria local, cujo coletor de então, Sr. Antônio Gonzaga Leite, e o escrivão Vicente Ferreira de Castro se submeteram sem a menor resistência. O chefe político de Amparo, Sr. Melchiades Rodrigues da Silva, já a esse tempo havia também deixado sua residência, indo para Ribeirão do Amparo.
EMOÇÃO QUE SE
RENOVA
Tomando posse
do dinheiro existente na repartição, Virgulino intimou o coletor a mandar
preparar o almoço para ele e sua gente, de que se incumbiu a família do mesmo
funcionário, todos temerosos de uma vingança, se não aquiescessem.
Depois disso, Lampião mandou chamar-me. Dois “caibras” compareceram até onde eu me encontrava e me levaram em sua companhia. Sentia um pavor indescritível, mas que podia fazer?
Nesse momento João de Deus Aragão interrompeu sua descrição. Olhamo-nos mais fixamente e notamos que uma extraordinária palidez estava estampada em sua face. Percebemos que ainda eram profundas as recordações que guardava daqueles instantes de emoção e pavor que então passara.
Controlando-se, e à insistência de todos que ali se encontravam ouvindo atentamente a narrativa, prosseguiu o barbeiro:
- Quando cheguei à sua presença, Lampião ordenou-me: - “Vá para a sua barbearia e prepare as ferramentas, porque vai atender a mim e aos meus “caibras”.
Mais horrorizado ainda, ante essa perspectiva, à qual não podia e nem tinha coragem para fugir, tratei de cumprir o mandado. Ajeitei tudo direitinho, apesar de que o medo fez-me cair o pincel e a bacia em que a espuma era feita. Fiquei esperando. A demora foi pequena, mas pareceu-me que séculos haviam se passado até quando o bando transpôs os umbrais do salão, tendo à frente o seu temível chefe, seguido de perto por “Volta Seca”. Este era ainda rapazola, encarregado de tomar conta da cavalhada, mas já demonstrava o que seria breves dias depois.
Novo intervalo se fez na narrativa, logo a seguir retomada:
- Lampião entrou. Deixou sua arma encostada a um canto, mas não quis tirar senão o chapéu, conservando as cartucheiras, a “lambedeira” e outros muitos petrechos que conduzia em volta do tórax. Os outros cangaceiros, porém, ficaram ao meu redor, com regular distância, todos de arma em punho, prontos a atirar em mim na hipótese de que pudesse dar um golpe em falso. Mesmo que eu quisesse, assim, sob a pontaria dos facínoras, não me atreveria a tentar qualquer gesto suspeito. Entretanto, quase que cometia uma fala involuntária. É que sentia as pernas trôpegas e tremor incontrolável no corpo, até as mãos.
Percebendo o que se passava, Virgulino disse-me:
Está com medo, “mestre”?
E acrescentou:
- Não tenha receio, que aqui ninguém lhe fará mal...
Empregando toda a minha vontade, consegui cumprir a tarefa. Aparei os cabelos de Lampião, que ele trazia muito compridos, deixando-os à altura da nuca, fazendo-lhe ainda a barba. Quando terminei, entregando-me uma cédula, com grande admiração minha, o facínora falou-me:
- Toma esses 20$000 pelo serviço meu e do meu pessoal.
Deixei o dinheiro sobre a banqueta, receoso de conservá-lo na gaveta e menos ainda no bolso. A seguir, continuei o trabalho, atendendo a todos os “caibras” que se iam revezando, enquanto Lampião caminhava para a porta e mandava que a multidão ali postada – toda formada de gente humilde – se afastasse.
E gritou para os curiosos:
- Vão saindo daqui. Está muito calor.
É claro que não foi preciso nova ordem. Todos, num relance, deixaram o local, amedrontados.
FUGIU E NEM
QUIS ALMOÇAR
- As pessoas
importantes da vila não quiseram ver “Lampião”? – perguntamos.
- Qual o quê – retrucou prontamente João de Deus. Fugiram todas, logo que souberam que o “capitão” estava em Amparo.
E o homem que afirma ter estado com a navalha no pescoço de “Lampião” prossegue:
- Quando acabei o serviço, os cangaceiros deixaram-me sozinhos, partindo para outros pontos da vila, a fim de se apoderarem de tudo quanto ali encontraram, que representava valor e de fácil condução, como joias, dinheiro e um cavalo. Logo que os vi distantes, tratei de correr para a casa de minha mãe, Maria das Mercês Eliot, que ainda vive no Amparo. Apesar da insistência dessa, não quis almoçar. Apanhei imediatamente minha mala, com umas poucas pelas de roupa, deixando a Vila e indo para o lugar denominado Bando de Cipó, com a mala às costas, tomei um caminhão que ia para os lados de Ilhéus. Dormi uma noite inteira na sarjeta, mas na manhã seguinte continuei a marcha para São Salvador, de onde, em 1934, vim para aqui.
Havia ele encerrado sua palpitante narrativa, mas ainda lhe fizemos uma pergunta:
- Nunca mais voltou à sua terra, para rever os pais e amigos?
João de Deus Aragão tinha um relâmpago nos olhos quando nos respondeu:
- Nunca. É ainda muito viva a impressão daqueles momentos de pavor, para que eu lá retornasse.
“A NOITE” (RJ)
- 30/07/1938
O barbeiro
João de Deus em foto ilustrativa da matéria, esta, parte integrante da série
de publicações produzidas pelo jornal carioca imediatamente após a morte de
Lampião.
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