*Rangel Alves da Costa
Teotônio Alves China, ou China do Poço, esposo de Marieta Alves de Sá (e estes pais de minha mãe Maria do Perpétuo Alves, Dona Peta), foi um dos mais afamados e prestigiados cidadãos de Poço Redondo, desde um tempo que o mesmo não passava de uma pequena povoação de poucas casas e ruas, sendo distrito de Porto da Folha.
Assim que a originaria comunidade do Poço de Cima começou a migrar para o Poço de Baixo, localidade que depois foi denominada de Poço Redondo (“um poço redondo no Riacho Jacaré”), em virtude do afluxo de residências que começaram a ser construídas ao redor das muitas propriedades, então China começou a prosperar com sua bodega de miudezas e logo se tornou não só proprietário de fazendas na região como a se firmar como um dos potentados da pequena povoação.
Não sabia ler nem escrever, mas com tino sem igual para os negócios (aliás, com meu avô paterno Ermerindo também foi assim). Além da bodega, era proprietário das fazendas Recurso e Rocinha. Nascido em nas beiradas do Jacaré em 1890, aos 39 anos de idade então viu acontecer na sua portentosa residência, casarão de esquina (onde hoje funciona a loja de Dona Maria de Mauro), um fato inusitado e aspecto essencial no contexto cangaço.
Foi, pois, no ano de 1929 que Lampião e seu grupo (apenas nove cangaceiros) adentraram no lugarejo e foram bater à porta da casa de China. Já conhecendo a fama de bonachão e acolhedor daquele senhor de Poço Redondo, já trazendo no embornal as informações necessárias sobre o que poderia encontrar, o Capitão do cangaço ali chegou apenas para ligeiro repouso e regabofe.
Contudo, sendo época de missa na igrejinha local (apenas duas por ano, uma na festa da padroeira Nossa Senhora da Conceição e outra em data escolhida pela população), na casa de China e Marieta já repousava num dos quartos o Padre Arthur Passos, chegado em lombo de burro de Porto da Folha para aquela celebração. O mês era abril de 29, o dia era o 19.
Ante a presença do Capitão Lampião, logo o avexamento tomou conta dos donos da casa. Como iam fazer perante a presença da cruz e do mosquetão no mesmo lugar? Sabiam que o velho sacerdote não gostar nada de saber que o desatino e perigoso Lampião estava no mesmo lugar que ele. Ainda assim, com o jeito possível do sertanejo, China resolveu contar logo ao cangaceiro sobre a presença do religioso. Para seu espanto, Lampião se mostrou satisfeito pela coincidência do inesperado encontro e também desejoso de ter uma palavrinha com o da igreja.
Bateu à porta do sacerdote, anunciou quem batia, e se deparou com uma fera raivosa em pessoa. O velho padre chispava fogo e se danava a dizer impropérios nas fuças do rei cangaceiro. Este, religioso e devoto, temeroso dos mistérios do alto, tomava tudo aquilo apenas como exaltação de momento e até justificada pela sua fama sertões adentro. Ademais, logo atinou que contestando o sacerdote não conseguiria facilmente um intento naquele momento surgido: assistir missa.
Aos poucos o padre foi se acalmando e não demorou muito e já estava se fartando do regabofe ao lado do mais famoso dos cangaceiros. Depois do vinho bebericado, da comida farta e saborosa preparada por Dona Marieta e do proseado alegre e festivo entre todos, Lampião seria novamente batizado se assim desejasse ou mesmo levado como lembrança os paramentos sacerdotais. Contentou-se somente em assistir missa ao lado dos demais cangaceiros.
Ali na igreja uma visão espetacular: o bando de Lampião perante os passos do Evangelho, sendo abençoado e recebendo a hóstia sagrada, mas do lado de cada um a arma, o punhal, a força matadeira. Depois disso, Lampião arribou mais que agradecido e prometendo logo voltar, o que o fez por toda aquela região e povoação. E China e Marieta, agora muito mais reconhecidos e prestigiados perante os acontecidos, continuaram tocando suas vidas a partir do casarão, da bodega e dos afazeres na terra.
Naquele casarão nasceram os filhos do casal: Antônio, Edmundo (Joca), Jorge, Marina, Domitila (Dona Tila), Everaldina, Maria do Perpétuo (Peta), e ainda outra cujo nome agora me foge à memória. Naquele casarão, ao longo do tempo, muitos visitantes ilustres chegaram ornamentados de terno de linho branco e chapéu Panamá. Aquele casarão, de portas e janelas sempre abertas, afeiçoava-se a uma hospedaria sertaneja a todo aquele que precisasse de repouso e de alimento. Passaram viajantes, andarilhos, comboeiros, senhores de terras e rebanhos, vidas sertanejas que jamais poderão ser esquecidas.
Quando meu avô China faleceu em 1978, aos 88 anos, já desfeito de suas propriedades e apenas com sua bodega ao lado, então Dona Marieta se fez ainda mais religiosa e passou a viver para os seus, seus amigos e principalmente sua igreja. Pequenina, miudando ainda mais com a idade, era sempre avistada em passos ligeiros em direção aos ofícios na igreja matriz. De xale, rosário à mão, noutros tempos sempre levava consigo sua cadeira de missa (genuflexório). Contudo, jamais deixava de sentar à sua calçada ao entardecer e abençoar a todo aquele que passasse pedindo a proteção divina. “Deus abençoe, meu fio!”.
Mas um dia, não muito tempo após seu falecimento, o belo e suntuoso casarão foi derrubado. Em seu lugar ficou apenas um vazio de terra nua. E hoje, mesmo com a nova construção em seu lugar, é como se casa de China e Marieta ainda estivesse ali, tão bela, tão viva e tão presente.
Escritor
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