Por André Resende, G1 PB
O maior fato político da Paraíba no Século XX, também considerado um dos mais importantes do Brasil pelo menos na primeira metade do século passado: a morte de João Pessoa, então presidente da Paraíba, completa 90 anos neste domingo (26). O assassinato que eternizou o nome do político na capital da Paraíba e o luto na bandeira do estado foi o episódio fatídico que mudou os rumos políticos do Brasil, decretando o fim do período da República Velha e alçando Getúlio Vargas ao poder.
Crime passional ou homicídio por razões políticas? Embora haja um acirramento de narrativas para contar as versões do fato, o professor da UFCG José Luciano de Queiroz Aires, doutor em História pela UFPE e autor do livro “A Fabricação do Mito João Pessoa: Batalhas de Memórias na Paraíba (1930-1945)”, propõe uma explicação científica para o assassinato do governador da Paraíba em 26 de julho de 1930 pelo advogado João Dantas, no Recife, como um misto das duas versões totalizantes.
O professor e escritor afirma que sem a morte de João Pessoa, e o tratamento político que foi dado a ela, com a peregrinação do corpo do presidente da Paraíba por todas as capitais antes de ser enterrado no Rio de Janeiro, quase como uma santificação do político, Getúlio Vargas dificilmente teria ascendido à Presidência da República por meio de uma tomada de poder através do que ficou conhecido como Revolução de 1930.
“A verdade é que João Dantas matou João Pessoa, mas, ao mesmo tempo, o transformou em um mártir, permitiu que se criasse um mito na figura do Governador da Paraíba na época. Esse fato histórico muda a História do Brasil. Ele germina o ‘getulismo’, não podemos subestimar como um crime passional, muito embora o estopim tenha sido”, explica.
A morte de João Pessoa, que na época tinha perdido as eleições presidenciais em março de 1930 enquanto vice-presidente na chapa de Getúlio Vargas para Júlio Prestes, ajudou Getúlio a alimentar uma consternação popular que, somada à acusação de eleições fraudulentas e ao momento de crise financeira em consequência da crise de 1929, desencadearia o episódio histórico que ficou conhecido como Revolução de 1930.
A revolta destituiu o presidente Washington Luís, a quem João Pessoa se posicionou como oposição política enquanto vivo, impediu a posse de Júlio Prestes e determinou Getúlio Vargas como chefe do governo provisório que comandaria o Brasil. “Podemos afirmar que a morte de João Pessoa, com todo contexto político, econômico e social que existia, foi um dos motivos da Revolução de 1930 e consequentemente do fim do período que chamamos de República Velha”, analisou Aires.
Entre julho e outubro daquele 1930, à medida em que o corpo de João Pessoa peregrinava entre as principais capitais do Brasil para receber homenagens por conta da morte pretensamente política, seu nome ia batizando ruas, avenidas e praças pelo país, conta o historiador.
O ritual criado em torno das solenidades fúnebres para João Pessoa criou um mito, sendo idealizado pelo empresário e comunicador paraibano Assis Chateaubriand, entusiasta da Aliança Liberal, grupo político que o governador da Paraíba fazia parte, na análise de José Luciano de Queiroz Aires.
“Não só na Paraíba, quase todos os estados do brasil colocaram o nome de João Pessoa em algum espaço público. Em vários estados temos praças, homenagens a ele, mas essa mobilização aqui foi muito mais forte, com a mudança do nome da capital, da bandeira do estado, e com a criação de monumentos e de até um hino para a pessoa de João Pessoa”, conclui o professor.
Crise na oligarquia paraibana
Para entender o que pode ter levado João Dantas a puxar o gatilho do revólver e matar João Pessoa dentro da confeitaria Glória, no Centro do Recife, em 26 de julho de 1930, o professor e escritor José Luciano de Queiroz Aires comenta que é necessário antes conhecer o contexto político da Paraíba no período.
Àquela altura, João Pessoa estava há dois anos como governador do estado. Apesar de ter saído de uma família que pertencia à oligarquia paraibana, tentava implementar uma política moderna e centralizante que rompia com os interesses do grupo político do qual ele saiu.
Nesse modelo de gestão que João Pessoa instalava na Paraíba, os coronéis da época, como eram conhecidas as lideranças econômicas e políticas das cidades do interior, começaram a perder poder. O então governador paraibano trouxe para o aparelho do estado a maior parte das decisões que estavam nas mãos dos coronéis.
“As obras contra a seca passaram para o estado, ele desarmou coronéis, criou imposto, uma espécie de pedágio. Criou também uma reforma tributária para dinamizar o porto e o comércio no estado. As entradas e as saídas de produtos que vinham de fora, se fosse pelo porto da capital tinham um valor de tributo, e se fosse direto com Recife, a tarifa era altíssima. Esse é o fator fundante da política centralizadora”, relata o professor, pesquisador e escritor.
João Pessoa também cria, em meio a esse panorama político, o Tribunal de Contas, para fiscalizar as contas das prefeituras paraibanas, que eram reservas de poder dos coronéis. “Ele não rompe publicamente com os coronéis, mas submete todos eles a essa centralização. A reforma tributária, aliás, é o que explica, por exemplo, a Guerra de Princesa”, avalia Aires.
O episódio histórico da Revolta de Princesa, movimento armado comandado pelo coronel José Pereira contra as imposições do governo João Pessoa, culminou com conflito violento entre o líder político da cidade de Princesa Isabel contra a Polícia Militar do estado. Aquela é considerada a mais emblemática demonstração política de indignação das oligarquias ao modelo gestor de Pessoa.
A Guerra de Princesa, como lembra Aires, só viria a acabar - sem um vencedor na análise dele -, após uma intervenção federal a mando do presidente Washington Luís, embora não tenha contido a insatisfação dos coronéis. Além da queixa por conta dos impostos, que prejudicaram os negócios, as oligarquias paraibanas não aprovaram a vontade política de João Pessoa de excluir das eleições quadros antigos e consagrados no partido.
Na reunião do Partido Republicano da Paraíba, João Pessoa, ainda enquanto integrante, havia se posicionado contra as candidaturas de políticos mais tradicionais, oriundos das oligarquias, como o caso de João Suassuna, que havia antecedido Pessoa como presidente da Paraíba e que ocupava o cargo de deputado.
“Na convenção do partido, em 1930, João Pessoa defendeu uma política de renovação, queria tirar pessoas velhas para botar nomes novos. Nessa defesa, sacrificou o nome de João Suassuna, que buscava reeleição, mas manteve o do próprio primo na disputa, Carlos Pessoa de Umbuzeiro, que representava a velha política”, comentou Aires.
Em meio ao contexto político de conflito interno nas oligarquias, causado por João Pessoa, uma decisão governamental que causou contrariedade em outra família, a Dantas, da cidade de Teixeira, foi a mudança de chefias de cargos públicos importantes. Na época, o presidente (nome do cargo de então governador do estado) detinha o poder discricionária de mudar peças em órgãos da administração direta, como ainda é atualmente, e também no judiciário.
João Pessoa trocou juízes e delegados nas cidades onde as oligarquias tinham muita influência. No caso de Teixeira, reduto político da família Dantas, o presidente da Paraíba nomeou um delegado que passou a perseguir politicamente pessoas daquela família. “Temos registro de prisões de familiares de João Dantas no período, de mulheres da família, inclusive, fato que gerou muita indignação”, explicou o professor da UFCG.
A postura assumida por João Pessoa gerou uma rusga com três das principais oligarquias: Pereira, de Princesa Isabel; Suassuna, de Catolé do Rocha; e Dantas, de Teixeira. “Todos eram do mesmo grupo, incluindo a família Pessoa de Umbuzeiro, mas após o governo de João Pessoa acontece esse racha na oligarquia paraibana, principalmente com essas três famílias tradicionais do estado”, ressalta José Luciano de Queiroz Aires.
Muitos dos considerados perseguidos politicamente pelo governador decidiam pelo exílio político, indo morar em outros estados. A maior parte deles estabeleceu residência no estado vizinho Pernambuco, como foi o caso de João Suassuna, pai do escritor Ariano Suassuna, e do advogado João Dantas, que viria a se tornar no dia 26 de julho de 1930 o assassino de João Pessoa.
Ataques nos jornais
A crise vivida entre o governador do estado com as oligarquias gerou constantes discussões públicas por meio dos jornais, principalmente entre João Dantas, que escrevia para o Jornal do Commércio de Recife, e de João Pessoa, articulista do jornal do próprio governo paraibano, A União. Os embates por meio de artigos nos dois periódicos integram parte do acervo resgatado pelo historiador Wellington Aguiar, em seu livro “João Pessoa: O Reformador”, de 2005.
O uso do jornal A União para atacar seus desafetos políticos, aliás, era recorrente por parte de João Pessoa. Entre 20 e 26 de julho de 1930, data fatídica de seu assassinato, o periódico paraibano, considerado um dos mais antigos da América do Sul, reservou ataques diretos às famílias Pereira, Dantas e Suassuna nas manchetes principais.
Além dos ataques públicos às famílias rivais, inclusive como na capa do jornal de 24 de julho de 1930 quando liga João Suassuna ao movimento do cangaço no Sertão paraibano, o jornal A União deu publicidade a documentos retirados a partir de um arrombamento supostamente clandestino feito ao escritório mantido por João Dantas na capital paraibana, à época ainda cidade da Parahyba.
A versão que se popularizou foi de que o escritório foi invadido a mando político de João Pessoa, no entanto, oficialmente, o que se sabe é que o escritório foi encontrado arrombado e os documentos que nele estavam foram recolhidos pela polícia estadual da época.
O professor da UFCG, doutor em História pela UFPE, José Luciano de Queiroz Aires explica que não há mais como confirmar documentalmente que João Pessoa foi mandante da invasão ao escritório de João Dantas, mas que é indiscutível o uso político do material que foi recolhido a partir daquela invasão.
“A documentação sugere que [a invasão] foi feita pela polícia da Paraíba, inclusive o gabinete onde João Pessoa atendia era na mesma rua do apartamento que foi arrombado, mas não temos mais como comprovar a veracidade absoluta”, explicou o historiador.
Parte desses documentos foram publicados pelo jornal A União sob a manchete “Revelando a alma tortuosa dos conspiradores contra a ordem e a dignidade de nossa terra - A polícia apreendeu armas e sensacionais documentos na residência do sr. João Dantas”.
“Investigando sobre o caso, a polícia examinou os papéis espalhados, notando que entre eles havia documentos profundamente comprometedores no que se relaciona com a ordem pública e a agitação política que separou nos últimos tempos parahybanos dignos do grupo de aventureiros e traidores sem escrúpulos”, diz um trecho da reportagem sobre o episódio publicada no dia 22 de julho de 1930.
A reportagem inclusive traz que “os documentos encontrados ‘A União’ começará amanhã a publicar, porquanto os mesmos contêm curiosas revelações sobre os miseráveis modos de agir dos inimigos da Parahyba, dos quais o tarado João Dantas era uma espécie de espião e cônsul geral nesta cidade”.
O mesmo assunto estampou a capa do jornal A União nos dias 23 e 26 de julho, e teve publicações de reportagens nos dias 24 e 25 o mesmo mês. A manchete d’A União de 25 de julho, aliás, cita expressamente que a família Dantas havia roubado dinheiro dos cofres públicos a partir de obras estatais contra a seca.
A publicação das cartas de João Dantas cessou na edição de 26 de julho, quando na edição do dia seguinte, a cobertura jornalística do periódico do governo paraibano passou a se dedicar a reportar a morte de João Pessoa e seus desdobramentos. Porém, ao fim da publicação dessa edição, o jornal A União traz o seguinte trecho:
“No cofre marca ‘Torpedo’ encontrado no quarto do bacharel João Dantas a polícia achou notas redigidas pelo próprio punho do espião com a narrativa de atos amorosos pelo mesmo praticados. Tais notas não podem ser publicadas porque ofendem ao decoro comum. Mas quem quiser vê-las o pode fazer na delegacia”.
Logo em seguida, reproduz um poema escrito por João Dantas intitulado Sangue de Cangaceiro. As notas citadas na reportagem são as cartas de amor trocadas entre o advogado paraibano e a professora Anayde Beiriz, que em meio a essa briga política entre seu namorado e o governador do estado, teve sua honra ultrajada a partir da exposição de sua intimidade perante uma sociedade paraibana moralista e pouco afeita às mulheres que assumiam posturas sociais mais modernas.
‘Um crime pessoal’
O mesmo jornal A União que trazia o relato das notas imorais de João Dantas e indicava que estavam disponíveis na delegacia da capital paraibana, avisava que o presidente João Pessoa estaria no Recife, capital pernambucana, para visitar um amigo, o dr. Cunha Mello, que se convalescia de uma cirurgia. De toda forma, o poder tinha sido entregue ao vice-presidente Álvaro de Carvalho.
Se a nota no jornal influenciou nos planos de Dantas, não há como saber, porém após a sequência de ataques promovidos no jornal oficial do governo paraibano, o historiador José Luciano de Queiroz Aires comenta que é possível inferir que houve um contexto passional por parte do desafeto de João Pessoa.
“A exposição da intimidade do romance dele com a professora Anayde Beiriz pode ter sido um fato determinante nesse crime. A verdade é que a morte de João Pessoa foi um tiro que saiu pela culatra entre os perrepista [membros do Partido Republicano, rival ao de João Pessoa]. João Dantas criou um herói, houve uma mitificação. Os próprios perrepistas caíram em desgraça depois disso, passaram a ser perseguidos”, explicou.
O historiador comentou que não entende o crime meramente como passional, nem como apenas político. “Foi um crime de honra, como se dizia antigamente, para lavar a honra, foi por uma vingança em nome da honra. Havia uma sequência de problemas políticos, mas não foi um crime passional, foi um crime pessoal”, define o historiador doutor pela UFPE.
João Dantas e seu cunhado, acusado como cúmplice no assassinato, foram presos e posteriormente encontrados mortos dentro da cela em que ocuparam no Recife. A versão de suicídio de ambos não é aceita pela literatura histórica, que, segundo Aires, considera relatos de testemunhas de que o irmão de João Pessoa e um policial teriam sangrado João Dantas e seu cunhado no cárcere.
Anayde Beiriz, vítima indireta de todo esse acirramento político, após a morte de João Dantas, sabendo que a polícia estava à sua procura, se refugiou no Asilo Bom Pastor, no Recife. As freiras contam que quando ela chegou ao local já havia ingerido veneno, no dia 19 de outubro. Segundo a carta da Madre Superiora enviada à família, ela sofreu muito. Morreu rezando o Pai Nosso, no dia 22 de outubro de 1930.
João Pessoa, o presidente da Paraíba morto a tiros na confeitaria Glória no Recife, entrou para a história como mártir. Seu corpo peregrinou de porto em porto no Brasil, e foi enterrado no Rio de Janeiro. A comoção popular após sua morte gerou em setembro de 1930 a mudança do nome da capital da Paraíba e a adoção de bandeira vermelha e preta com o termo Nego, representando o luto e a luta.
“Não se pode subestimar a morte de João Pessoa. Foi um fato político mais importante para que ocorresse o fim da República Velha, para que mudasse para sempre os rumos da política do país”, concluiu José Luciano de Queiroz Aires.
https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2020/07/26/morte-de-joao-pessoa-90-anos-do-crime-que-marcou-a-paraiba-e-mudou-a-politica-no-brasil.ghtml
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