- Era um tempo ruim. Não tinha sossego. Era só desgraça, seca e miséria. Raro o dia, na caatinga, que podíamos nos dar ao luxo de uma xícara de café. Tinha vez de nós rompermos até 12 léguas (72 km) num dia. Um estirão danado. Nessas ocasiões, a gente mal parava pra comer e descansar. Travessias fortes, perambulando de um lado para outro. Enfrentava inimigos fortes e poderosos, ainda sofria dias e dias de fome e sede. Eis a vida no cangaço. Quase todos do grupo tinham menos de 25 anos (de idade).
Em 1920, mês de junho, Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, entra para o cangaço a convite de Sinhô Pereira. Foi seu comandante. Segundo ele próprio, sua entrada foi motivada pelo desejo de vingar a morte do seu pai. O líder Sinhô Pereira admirava-o pela sua valentia e por suas técnicas de guerras (era bom nisso). E Lampião, sempre que necessário, demonstrava idolatria ao comandante e até depois de sua saída fez tributo ao seu mestre, dizendo da sua admiração por ele. O mestre-comandante de Lampião, conta sua vida no livro “Sinhô Pereira: o comandante de Lampião”, de autoria de Nertan Macedo:
- Lampião era de uma família humilde. Ele nasceu a umas três léguas (18 km) de São Francisco, onde eu morava e seu pai fazia a feira e batizava os filhos. Conheci Lampião desde menino. Ele e seus irmãos eram independentes e muito trabalhadores. A questão dele foi de terra. Saturnino, pai de Zé Saturnino, queria tomar um pedaço de terra da fazenda Serra Vermelha, de Zé Ferreira, pai de Lampião. Houve uns tiros entre eles. Morreu um dos jagunços de Zé Saturnino, e Zé Ferreira saiu ferido. Aí “Os Ferreiras” se retiraram para Matinha de Água Branca, em Alagoas, onde ficaram sob a proteção do coronel Ulisses Lunas, em 1917. Eles estavam até destituídos de questão, quietos, trabalhando, quando em 1920 foram procurados por Antônio Matilde, casado com uma parenta deles, para juntos perseguirem Zé Saturnino. Antônio Matilde tinha um grupo de homens. Houve algumas lutas, morreu um sobrinho de Antônio Matilde e Casimiro Honório, tio de Zé Saturnino. Depois disso, Antônio Matilde desapareceu, deixando “Os Ferreiras” encrencados também com a polícia. Essa encrenca foi que provocou a morte de Zé Ferreira, pai de Lampião.
- Depois da morte de Casimiro Honório, o tenente José Lucena saiu em perseguição a Antônio Matilde. Soube que Zé Ferreira estava na casa de um “Fragoso”, foi lá e matou o velho. Antes havia matado Luís Fragoso, filho do dono da casa. Dona Maria José, mãe de Lampião, morreu 19 dias depois de desgosto. Depois da morte de Zé Ferreira, Lampião e irmãos juntaram-se com os irmãos Porcino, Antônio, Manuel e Pedro. Mas foi por poucos dias. Então, saíram atrás de José Lucena. Tiveram um encontro com um policial num lugar por nome Espírito Santo, fronteira de Pernambuco com Alagoas. Morreu gente de parte a parte. O cabo (policial) foi confundido com José Lucena e recebeu 12 tiros. A força (policial) era muito grande. Eles não eram nem a metade. Aí eles fugiram, achando que tinham matado José Lucena.
Pegando o gancho, farei aqui uma leitura do cangaço; numa visão social. Lampião fez história no cangaço tornando-se numa lenda. Seu nome está memorizado na memória coletiva e no panteão da imortalidade.
Segundo fontes bibliográficas, os três brasileiros mais biografados – todos com mais de 3000 livros escritos sobre eles - são: Padre Cícero, Lampião e Luiz Gonzaga. Todos nordestinos. Lampião, no caso aqui, foi a referência de mobilização para todos esses grandes líderes existentes da arena da justiça social. Certa vez, o então deputado federal Francisco Julião, representante das Ligas Camponesas e militante político pela reforma agrária, declarou: “Lampião foi o primeiro homem do Nordeste a batalhar contra o latifúndio e a arbitrariedade”. Assim como muitos outros personagens da História, foi injustiçado pela visão elitista. Os fatos históricos perderam lugar para as lendas.
O fato, é que Lampião era um jovem normal e tranquilo que trabalhava para Delmiro Gouveia, grande empresário da época. Sua revolta deu início a partir do dia em que seu pai (José Ferreira) foi assassinado (em 1920) pelo sargento de polícia José Lucena, por causa de um litígio com o vizinho José Saturnino. Naquela época a honra andava lado a lado com a vingança. Recorrer a quem? À justiça dos homens, muitas vezes manipulada pelo próprio coronelismo político? Não existia democracia. Nem diplomacia. Agir pela via da violência não era um erro de causa, era o meio mais sensato para o fim da dignidade moral.
Lampião foi um idealista, um revolucionário primitivo, insurgente contra a opressão do latifúndio e a injustiça do sertão nordestino. Um “Robin Hood”. Um justiceiro popular. Ele sempre foi um homem justo, que comungava de valores de respeito e de relacionamento social. Seu problema não era com o povo, nunca o perseguiu. E sim, com os coronéis rurais (posseiros das terras), líderes políticos e comerciantes que exploravam o povo com a carestia. Protestou contra todas as mazelas sociais existentes na região Nordeste. Ensinou o povo a se indignar, a mobilizar-se; ensinou-nos a importância da luta.
Sua imagem revolucionária começou a se desenhar em 1935, ainda vivo, quando a Aliança Nacional Libertadora – ANL citou-o como um de seus inspiradores políticos. Já nos anos 20 era a referência para essa linha de atuação pela justiça social. E provavelmente nos anos 10 o cangaço já representava o principal exemplo de mobilização social. Existiram erros de causa por parte do cangaço. Isso é inegável. Mas diante da grande obra da causa cívica e do mérito da história desses brasileiros cangaceiros, são insignificantes.
Sobre a referência social de Lampião, o historiador norte-americano Billy Jayner Chandler escreveu:
- Os ingleses vibram com os feitos de Robin Hood. Os norte-americanos contam as aventuras de Jesse James. Os mexicanos, as façanhas de Pancho Villa. E os brasileiros, as de Lampião.
O cangaço foi importante e notório na luta pela liberdade e dignidade do povo sertanejo do Brasil. Deu significativa contribuição para um país mais desenvolvido e menos desigual socialmente. Vamos nos situar na região.
Imagine a população sem renda que lhe oferecesse as mínimas condições de sobrevivência... Um povo que fazia parte apenas da estatística nacional brasileira como integrante da população. A exclusão social era total. Esses atores sociais foram ardentes defensores da causa da justiça, e os principais intérpretes das aspirações das massas. Foram líderes sociais. Heróis do povo brasileiro.
Marcos Oliveira Damasceno, 30 anos, escritor. Natural de Dom Inocêncio – PI. Doutorado em Filosofia Política. Diretor-Presidente da Produtora Sertão.
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