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segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O SIGNIFICADO DA FORMA DE FILMAR

 

No filme, a construção de uma aura mítica ao redor de ícones históricos pode ser percebida no encontro entre Lampião e Padre Cícero. Mais uma vez, a maneira como a cena foi filmada interfere na interpretação dos significados apresentados. A imagem é azulada e os movimentos são flutuantes, efeitos que emolduram a ação com uma atmosfera onírica. O fato ocorreu em 1926 em Juazeiro, no Ceará, mas a forma como o filme o reconstitui deixa em aberto se aquilo é um flashback ou uma alegoria que pode estar ambientada no além (no céu ou no purgatório).

Benjamin Abrahão aparece entre os dois mitos. A sequência, que ressurge no filme mais de uma vez, serve também para demarcar que o cineasta libanês conseguiu fotografar Lampião e Padre Cícero juntos. A foto foi essencial para que ele futuramente conseguisse apoio de coronéis aliados ao cangaço e confiança para ser pessoalmente aceito com sua câmera entre os cangaceiros.

Luiz Carlos Vasconcelos constrói uma nova imagem de Lampião que ficou gravada no subconsciente coletivo. A caracterização criada pelo ator tem potência suficiente para substituir ou complementar outros rostos (Leonardo Villar, Nelson Xavier) já fixados no imaginário nacional graças ao cinema e à TV. Ele consegue equilibrar os estados de agressividade e de elegância do personagem (além de combinar uma coisa a outra em cenas de batalhas, graças à precisão e à classe com a qual manipula a pistola e outras armas). O lampião do Baile dança forró, ouve discos em gramofone, bebe uísque, joga baralho e aprecia perfumes, mas não hesita na hora de matar.

O ator pernambucano Aramis Trindade interpreta o tenente Lindalvo Rosas, o antagonista do anti-herói. Não chega a ser um vilão à altura do inimigo. Funciona mais como contraponto cômico. Com estilo humorístico, o intérprete faz o personagem crescer e impor-se sempre que aparece. O figurino (de Mônica Lapa), com calças largas e pequeno chapéu militar, associa-se aos inusitados ângulos de câmera para conferir trejeitos cartunescos ao soldado.

As estilizadas imagens de Lindalvo são mais um exemplo da inquietação visual de Baile perfumado. Nos diálogos do filme, há sempre planos e contraplanos com enquadramentos mais convencionais, que parecem ter sido feitos para garantir a continuidade ou como uma opção de segurança. No entanto, são mais marcantes as construções mais mirabolantes. Um encontro entre Benjamin e Ademar na praia é visto de cima. Uma outra negociação é mostrada com um ventilador em primeiro plano, com os personagens por trás das hélices em rotação rápida. A primeira conversa entre o tenente e o libanês também é filmada de baixo pra cima, de um ângulo que deforma os corpos e resulta em um efeito lisérgico de derretimento. Há ainda uma família retratada de cabeça para baixo (referência ao jogo de lentes e espelhos das câmeras fotográficas antigas).

Os planos-sequência longos são os que mais evidenciam o comportamento mirabolante da câmera. A cena inicial atravessa quartos e corredores e desce uma escadaria para mostrar os últimos momentos de vida e o velório de Padre Cícero. A inspiração parece vir de filmes de Orson Welles, como A marca da maldade, que tem abertura sem cortes em que uma bomba é armada nos EUA, colocada no porta-malas de um carro e levada ao México, onde explode. No início de Baile perfumado, o sacerdote cearense atravessa da vida para a morte em um take contínuo.

Antes do longa, Lírio Ferreira dirigiu, junto com Amim Stepple, o curta-metragem That’s a lero lero (1994), sobre a passagem de Orson Welles pelo Recife em 1942, que serve como pista sobre as referências wellianas presentes em Baile. A presença de estrangeiros no Brasil, por sinal, é tema recorrente nas duas obras e em uma série de filmes que passa por Deserto feliz (2007), de Paulo Caldas, e Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes, ambos com personagens alemães em visita a Pernambuco. Lírio também explorou, em Árido movie (2006) e Sangue azul (2014), o impacto da chegada de viajantes a localidades distantes e isoladas.

Em Baile, os planos-sequência chamam ainda mais atenção quando filmados com steadycam, recurso que elimina as tremulações e proporciona fluidez aos movimentos de câmera, consagrado por Stanley Kubrick em O iluminado (1980). No filme pernambucano, o equipamento é essencial na abertura e em momentos como as caminhadas pela caatinga ou as imagens aéreas.

http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/noticia/cadernos/viver/2016/09/o-significado-da-forma-de-filmar.html

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