Por José
Gonçalves do Nascimento*
Não poderia
haver título melhor para estas linhas em que nos deteremos sobre as já saudosas
casas de farinha. A frase é de um cantador do sertão que ouvi nos meus dias de
menino. Ah, as casas de farinhas!
Poderíamos
dizer que a vida no sertão começava na quadra da farinhada. Para a casa de
farinha se voltavam todas as atenções, transformando-se a mesma num pólo
aglutinador de pessoas advindas dos mais diferentes rincões. Famílias inteiras
mudavam-se para lá, onde se demoravam por dias e até semanas, o tempo que fosse
necessário para dar por pronta a cobiçada iguaria.
A festa
começava na roça, na arranca da mandioca. Sim, a festa, porque aquilo não era
trabalho. Parecia mais um folguedo, regado a pinga boa e animado por acaloradas
cantorias. As arrancas eram disputadíssimas e possuíam caráter de evento social,
com agenda previamente estabelecida. Assim se evitava que duas arrancas
acontecessem ao mesmo tempo. Era a festa da mandioca.
Acomodadas em
caçuás e transportadas no lombo de jumentos, as raízes chegavam à casa de
farinha, onde eram aguardas por rapadeiras habilidosas. Em pouco tempo, livre
da casca, o produto repousava branquinho, pronto para a “desmancha”.
E a festa
prosseguia, cada um com sua incumbência: rapar, ralar, prensar, peneirar,
enfornar, ensacar; eis a linha de produção. Recolhida em cochos ou gamelas, a
manipueira fornecia a alvíssima tapioca posteriormente transformada nos
alvíssimos beijus, que eram utilizados no desjejum, com café quente, da hora. A
cada passo, a cada processo, as pessoas iam se revelando mais qualificadas para
as tarefas a que eram destinadas. Homens feitos, mulheres e meninos, todos
atuando com habilidade extraordinária. Não era pra menos. O ofício é antigo;
vem de eras imemoráveis; os nativos já o faziam. O Brasil, aliás, nasceu sob o
signo da farinha. Foi ela seu primeiro sustento; um maná dos deuses a forjar
uma nação.
A casa de
farinha não era só uma casa de farinha. Era uma indústria de saberes, de
afetos, de poesia. Vivia ela da solidariedade, da cooperação, da ajuda mútua.
Sua lógica era a do mutirão, do trabalho conjunto, que forma fraternidade. Era
o jeito bíblico e conselheirista de conceber a vida, de viver em sociedade. Sua
produção tinha como fim o consumo familiar, comunitário, sem visar o lucro
cego, fruto da ambição mercantilista.
A casa de
farinha modelou a cultura sertaneja. Estabeleceu formas de convivência e fixou
canais de interação. Era lugar de encontro, de ajuntamento, de
confraternização. Por ali circulavam informações, trocavam-se experiências,
construíam-se novas amizades. Contavam-se histórias de trancoso, liam-se
folhetos de cordel, cantava-se a moda da terra. Vez ou outra, aparecia um
sanfoneiro para animar a festa. O ambiente já era uma festa.
À noite, à
boca do forno, juntava-se a rapaziada. Era a hora da paquera. Muitos iam à casa
de farinha com o intuito de namorar. E namoravam. Não foram poucos os
casamentos nascidos ali, ao crepitar das brasas em chama.
Veio a
mecanização e afastou o que havia de mais precioso. A casa de farinha já não é
mais a mesma. Perdeu o encanto de outros tempos. Despida de poesia e de calor
humano, hoje não passa de velha ruína perdida em meio à capoeira, como se fora
um fogo morto.
*Poeta e
cronista
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
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