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segunda-feira, 1 de maio de 2017

SOLIDÃO, CHUVA E A LÁGRIMA POR BELCHIOR

*Rangel Alves da Costa

Mesmo que eu goste tanto de solidão como de chuva, emaranha os sentimentos ficar tão solitário num dia inteiro de água caindo das nuvens.
Isso aconteceu comigo ontem, domingo véspera de feriado. Deitei sozinho, acordei sozinho e o dia inteiro eu passei sob o véu da solidão.
Sou solteiro. Todo mundo viajou. Eu que teria que seguir ao sertão desde a sexta-feira, eis que acabei ficando impossibilitado de viajar e fiquei sozinho.
Mas neste domingo a solidão aumentou, ficou imensa, abismal. No sábado sempre há algum movimento pelas ruas, mas no domingo tudo silencia de vez.
Não só o silêncio da casa e das ruas, mas principalmente a chuva caindo desde a madrugada. E o dia inteirinho ora de chuva forte ora de pingos incessantemente caindo.
O silêncio, a solidão e a chuva caindo marcaram o meu dia. E também uma saudade sem fim de alguém que tanto amo e que estava onde eu deveria estar e não fui.
Gosto demais quando acordo - sempre na madrugada - e sigo à porta dos fundos para sentir a chuva caindo. Também quando rente ao portão da frente fico sentindo os seus pingos.
Em instantes assim, com o silêncio da madrugada cortado apenas pelos sons da chuva caindo, é como se a memória seguisse rumos distantes e trouxessem mil nostalgias.
No silêncio da madrugada também me encontro mais, reflito mais, escrevo melhor. Mas quando é madrugada chuvosa, o melhor mesmo é deixar que o olhar acompanhe seu véu.
Como afirmado, sempre prefiro escrever no silêncio da madrugada. Contudo, a certeza de que o dia inteiro seria de chuva e também de solidão, as letras pareceram sumidas.
Tomava um cafezinho, fumava um cigarro, levantava para ir até o portão e avistar o asfalto brilhando da água escorrendo, tudo em busca de inspiração, mas nada.
Sim, chegava-me a inspiração, mas de coisas sobre as quais eu não desejava escrever. Saudade da namorada, da distância do meu sertão, saudade de muita coisa que tanto amo.
A manhã inteira assim nesse quase nada fazer. E o que fazia era pensar, rememorar, relembrar de coisas velhas e novas, como num apanhado depois que velhos baús são abertos.
E na sequência do dia uma notícia triste: a morte de Belchior. Mesmo já estando sumido desde tanto tempo, sua música o aproximava a todo instante. E ele havia morrido.
Então, entristecido, me pus a ouvir mentalmente suas canções geniais. Bem que poderia tocar cada uma no som adiante. Contudo, preferi ouvir na memória o grande mestre.
“Saia do meu caminho, eu preciso andar sozinho, deixem que eu decida minha vida...”. “Há tempo, muito tempo, que eu estou longe de casa, e nessas ilhas cheias de distância o meu blusão de couro se estragou...”.
Mas não suportei. Então cortei todo o silêncio e solidão com a sua inesquecível voz:

“Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto é menor
Do que a vida de qualquer pessoa

Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está
Fechado pra nós, que somos jovens

Para abraçar meu irmão e
Beijar minha menina, na rua
É que se fez o meu lábio, o meu braço
E a minha voz

Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantado
Com uma nova invenção
Vou ficar nessa cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro da nova estação
Eu sinto tudo na ferida viva
Do meu coração

Já faz tempo eu vi você na rua
Cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança é o quadro
Que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito
Tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais

Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências, as aparências não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu estou por fora
Ou então que eu estou enganando
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem

E hoje eu sei, eu sei que quem me deu a idéia
De uma nova consciência e juventude
Está em casa guardado por Deus
Contando seus metais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito
Tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos

Como nossos pais!”

E a solidão e a chuva agora acompanhadas de lágrimas. E foi como se o domingo molhado e tristonho também estivesse se despedindo do poeta do amor e da rebeldia.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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