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domingo, 27 de agosto de 2017

O SILÊNCIO DOS PÁSSAROS

*Rangel Alves da Costa


Há um inquietante silêncio nos pássaros. Em muitos lugares os pássaros não cantam mais. Mas principalmente no sertão os pássaros não cantam mais. Não há como ouvir canto daquilo inexistente, não há mais como ouvir trinado passarinheiro se as aves arribaram de vez, sumiram das galhagens e deixaram a mataria sertaneja em doloroso silêncio. E também os ninhos, restando somente as gaiolas com seus prisioneiros tristonhos. Triste sina viver chorando e o seu dono pensar que está cantando.
Rolinha fogo-pagô, coleirinho, curió, sabiá, sofrê, cabeça, azulão, pintassilgo, toda uma passarinhada voava de galho em galho em cada palmo daquele chão. E também o caboclinho, o tiziu, o tico-tico, a lavandeira, o sanhaço, numa festança de vida por cima das catingueiras, baraúnas e quixabeiras. E ainda o lamento rouco do carcará, do gavião, do anum, da coruja e do caburé. Cadê o piar da nambu e o palrar do periquito?
Passarinho pousava na mão, cantarolava em plena janela, fazia ninho na cumeeira e pelas vagas das coberturas de palha ou telha. O menino era amigo do passarinho, conversava com ele e prometia que jamais iria puxar seu pescoço mesmo que a fome apertasse demais. Pelo seu voo e pela escolha do local do ninho, logo o sertanejo sabia se a chuvarada se aproximava. Eis que passarinho em alvoroçado voo ou quando faz moradia rente ao chão é porque pingo grosso vai cair. Todo bom sertanejo sabe que é assim.
Os ouvidos atentos do sertanejo não precisavam ir muito longe na mataria para sentir a presença da orquestra passarinheira. Nas margens das estradas, nas malhadas das fazendas, nas beiradas de riachos, tanques e açudes, onde houvesse proximidade com mato e água, ali sobressaía a plangência da cantoria. Muitas vezes difícil de avistar o cantor, eis que pequenino e escondido na copa da grande árvore, mas a certeza de sua presença.
Mas também um tempo diferente, um passado até recente onde as aves possuíam garantia de moradia e de pouso e repouso. Não precisavam voar muito para encontrar uma galhagem segura para construir seu ninho e procriar. Por todo lugar os arvoredos, ainda que nem sempre grandiosos e imponentes, permitindo o aconchego da passarada. Os viveiros se formavam entre os galhos, enquanto que os troncos e arredores acolhiam outras espécies da fauna sertaneja.
O sertão era assim, tomado de uma vegetação rica e adaptada às condições climáticas, sem ter que se curvar ressequida todas as vezes que a seca do dia a dia chegasse querendo a tudo devorar. Em meio ao xiquexique, facheiro, mandacaru, ao cipó e à macambira, as árvores amigas da catingueira se espalhando de canto a outro. Juazeiros, angicos, cedros, umburanas e bonomes dividiam espaço com plantas que trocavam folhas por espinhos. Paisagem tão conhecida, e muitas vezes entristecida, retratava a pujança e a fragilidade de uma terra.
Fragilidade sim, pois mesmo que o sertão seja visto como a Fênix que sempre renasce das cinzas e o seu habitante, o sertanejo, um forte, na expressão euclidiana, não há pedra fincada no tempo que resista à brabeza da seca maior. E tudo se curva e se dobra, esmorece e definha, se prostra esperando a gota d’água. Até mesmo o mandacaru, tido como imortal diante das inclemências, mantém seus braços ossudos e espinhentos em direção aos céus. E dizem que chora, dizem que implora.
Mesmo com as plantas ressequidas, com a nudez marrom-acinzentada, e mais tarde embranquecida, enfeando toda a paisagem, e o homem tudo fazendo pra manter água barrenta no fundo da moringa, ainda assim se ouvia o canto da passarada ao amanhecer. Cantoria que ia diminuindo quando os galhos já estavam nus e não restava nem lama no fundo do poço. Era o instante de a asa branca arribar para outras distâncias e lá permanecer até a invernada chegar. E toda a revoada passarinheira fazia o percurso de volta, enchendo de canto bonito toda aquela vida sertaneja.
Mas hoje não há mais passarinho nem quando os tanques estão cheios e as plantas rasteiras florescem verdejantes. A mão do homem, que antes aprisionava o pássaro, passou a utilizar de outra arma: devastar a moradia do pássaro. E onde não mais pé de pau, onde não há mais copa de árvore, não pode haver ninho nem passarinho. Apenas o silêncio.

Escritor
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