*Rangel Alves da Costa
Recordo-me muito bem da casinha de barro do outro lado do Jacaré, o riacho agora feio e triste que entrecorta a cidade de Poço Redondo e descamba pelas bandas do Velho Chico. Pois bem. Do outro lado do riachinho havia outro Poço Redondo.
Sim, um Poço Redondo roceiro, matuto, trabalhador, vaqueiro, empobrecido, valente, humilde, campesino de tez lanhada de sol. Após a passagem do riachinho, subindo pelos carrascais do entorno, tanta gente e tanta história que somente os cadernos do tempo para fazer recordar.
Caminho certeiro para o Alto de João Paulo, do lado direito de quem segue da cidade, como uma divisa de afazeres diferenciados. Havia o roçado de Delino e mais adiante o roçado frutífero de Luís Doce. Também um irmão de Delino mantinha casa de barro batido ao lado de Luís Doce.
Este, um sertanejo tão autêntico que quase não arribava o pé de seu terreno. Talvez pelo ciúme que tinha dos cajueiros que pendiam ao lado de sua casinha, e um ciúme maior do que tinha por sua fiel Marieta. Queria ver um cabra virado na gota, zangado de cuspir fogo, bastava ser flagrado debaixo ou pelos arredores de seus cajueiros.
Mas não tinha jeito. Ora, o principal campo de futebol da cidade era ali, bem em frente à malhada de sua casa, chamado até de Luisão. Dizem até que um dia Toinho de Lídia deu um chute tão forte que a bola furou a trave, derrubou a porta, entrou na casa e levou ao chão uma moringa e um pote. E acabou em cima da cuia onde Luís Doce comia uma banda de cuscuz seco.
O jogo acabou na hora. Bastou o facão tinir e todo mundo correu pelas bandas do riachinho. Foi quando Brucuté atravessou uma cerca de arame de um pulo só e foi parar no Alto, pensando que seguia em direção à cidade. Se é realmente verdade eu não sei. Só sei que dizem que foi assim.
Mas a verdade é que uma rapaziada seguia até lá exclusivamente para afanar cajus, mesmo verdosos. Furtados os cajus, desciam pelas barrancas do riachinho e iam tomar Serra Grande e Pitu no conforto das cacimbas que se formavam por todo o leito. Quando o riacho botava cheia então era uma festa. Um tempo que Luís Doce só faltava endoidar.
Mas falando da outra banda, no outro lado da estrada, apenas pequenas propriedades e uma ou outra casinha empobrecida no meio do mato. Era aí o mundo de uma linhagem poço-redondense: Remígio, Zé Dutra, Birrinho, etc. E um fato tristemente curioso com relação ao patriarca Remígio.
Naqueles idos, sempre que falavam em pobreza, em absoluta carência, em necessidade e dificuldade até com o mínimo de sobrevivência, sempre se dizia que era “pobre igual a Remígio”. Era pobre sim, como a maioria dos sertanejos. Era carente sim, como grande parte do poço-redondense que vivia nos escondidos de sua casinha no meio do mato. Mas não para se chegar à exemplificação do homem como o de maior pobreza do mundo.
Quantas vezes, ouvindo tais dizeres, eu ficava (em tempos de cheia do riachinho), por riba das pedras grandes olhando em direção à casinha. Uma tapera de barro, um barro se esvaindo no tempo, um viver realmente triste de se avistar. Mas apenas um viver sertanejo.
Uma fumaça negra subia. O fumo cheirava a toucinho. Mas em muito lugar também era assim. Por ali e mais adiante, apenas casebres, pobrezas, fumaças subindo, fumos cheirando a toucinho. Apenas um viver sertanejo.
Enquanto isso, por dentro das águas do riachinho, eu e a rapaziada apenas sorrindo, apenas brincando, comendo, bebendo. E logo ao lado, um pouco mais acima, aquele outro viver sertanejo.
Escritor
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