Por Marcos Oliveira Damasceno
De acordo com
a maioria dos autores sobre o tema, a expressão “cangaço” deriva-se de “canga”,
peça de madeira colocada sobre o pescoço dos bois de carga. Os cangaceiros
usavam verdadeiras cangas no pescoço para o transporte de utensílios pessoais.
O Cabeleira
O cangaço
ocorreu em vários momentos da história nordestina. Primeiro com o valente José
Gomes, de alcunha “Cabeleira”. Este aterrorizava as terras do Estado do
Pernambuco, por volta de 1775.
Anos depois, o cangaço foi protagonizado por
Jesuíno Alves de Melo Calado, apelidado de “Jesuíno Brilhante”. Nasceu em 1844
e faleceu em 1879. Era natural do Estado do Rio Grande do Norte. Este saqueava
os comboios do governo, roubava alimentos e distribuía entre a população pobre
das redondezas. Depois foi a vez de Antônio Silvino. Nasceu em 1875 e faleceu
em 1944. Tinha o apelido de “Rifle de Ouro”. Era pernambucano.
Iniciou-se o
cangaço como volante. Em 1914. O mentor e líder era Sebastião Pereira da Silva,
conhecido como Sinhô Pereira. Foi o comandante de Lampião. Nasceu em Serra
Talhada-PE, a 20 de janeiro de 1896. Apelidado “Demônio do Sertão” pelos
populares, por ser um rei nas estratégias de guerrilhas pela caatinga.
Por
várias vezes foi cercado pela polícia, e conseguia escapar. Era um homem do
bem, embora justiceiro popular, pela via da violência. A época era assim, a
justiça era feita pelas próprias mãos.
Era sobrinho
neto do coronel Andrelino Pereira da Silva, o Barão do Pajeú, primeiro
intendente (prefeito) da Vila Bela (Estado do Pernambuco). Também sobrinho do
Padre Pereira e filho de Manuel Pereira da Silva. A tradicional família
“Pereira”. A entrada do jovem Sebastião para o cangaço teve início em rixas e
mortes entre “Os Pereiras” e “Os Carvalhos”. No livro “Sinhô Pereira: o
comandante de Lampião”, de autoria de Nertan Macedo, publicado em 1980, a
descrição:
- Manoel
Pereira da Silva era irmão do Barão do Pajeú, e pai de outro Manoel – Manoel
Pereira da Silva Jacobina (Padre Pereira). Manoel (pai) sempre sonhou em ver o
filho padre. Mandou-o, como era de uso no tempo, estudar no Seminário de
Olinda. Manoel permaneceu algum tempo de batina, derramado sobre o seu latim,
mas terminou voltando para o Sertão, sem ser ordenado. Restou a Manoel o
apelido de Padre Pereira.
Padre Pereira
era do bem, mas por assumir a liderança política “dos Pereiras” passou a ser o
mais odiado “pelos Carvalhos” (família rival). Aos 72 anos de idade, foi vítima
de uma emboscada e atingido por um tiro do jagunço Luís de França, a mando da
família rival. Seu filho Luís Pereira da Silva Jacobina, apelidado Luís Padre,
tinha 17 anos de idade na ocasião da morte do seu pai. A esposa do Padre
Pereira, Dona Chiquinha, exigiu (por questão de honra) a vingança da morte do
marido. Luís Padre muito novo, não estava preparado para a missão. Pediu ajuda
ao primo Né Pereira (ou Né Dadu), irmão de Sinhô Pereira. Foram escolhidos
Joaquim Nogueira de Carvalho e Eustáquio Bernardino de Carvalho para serem
assassinados. Assim ocorreu.
Dias depois,
Né Pereira foi assassinado “pelos Carvalhos”. Aí entra na história Sinhô
Pereira, que se juntou ao primo Luís Padre, no desejo de vingar a morte do seu
irmão e do seu tio. Logo os dois jovens (Luís Padre com 24 anos e Sinhô Pereira
com 20 anos), mataram Luís de França, assassino de Padre Pereira. E com espírito
de guerra, formaram um grupo de jagunços que passou a ser volante, andando com
cangas para levar utensílios. Daí o apelido cangaceiros. Guerrearam por muitos
anos.
Sinhô Pereira e Luiz Padre
Em 1918, Sinhô
Pereira e Luís Padre resolveram recomeçar a vida e deixaram o cangaço. Alguns
historiadores afirmam que eles haviam atendido a um pedido de Padre Cícero,
enviado numa carta endereçada ao Sinhô Pereira, em que o sacerdote pedia que os
primos deixassem a região, que vivia em clima de guerra e de medo. O sacerdote
cearense ao receber a resposta favorável, enviou outra carta para Padre Castro,
no município de Pedro II (Estado do Piauí), pedindo ao vigário que recebesse os
dois jovens e encaminhasse-os para o Maranhão, para as terras do Barão de Santa
Filomena (Estado do Piauí) e do Marquês de Paranaguá (Estado do Piauí). Mas os
primos escolheram o Estado de Goiás. Do município de José do Belmonte-PE vieram
em direção ao Estado do Piauí. Em Simões-PI, a caminho de Pedro II-PI, foram
perseguidos e mudaram de rumo. Por questões de estratégia militar se separaram.
Montados a cavalos, acompanhados de seis cangaceiros.
Luís Padre
ficou com dois cangaceiros e rumou Uruçuí-PI (hoje município). Já Sinhô Pereira
ficou com quatro cangaceiros (“Cacheado”, “Coqueiro”, “Raimundo Morais” e
“Gato”), rumou Corrente-PI. Passou por São Raimundo Nonato-PI e chegou a
Caracol - PI. O próximo destino seria Parnaguá-PI. Mas foi cercado pela polícia
do Piauí, em Caracol – PI. Isso em dezembro de 1918. A força policial era
comandada pelo tenente Zeca Rubens. Um contingente de 20 soldados, e ainda mais
de 40 populares. Sinhô Pereira, tido por alguns como “arquiduque do sertão”, e
por outros o rei das guerrilhas na caatinga, mesmo com um grupo de cinco
pessoas conseguiu escapar. Suas táticas de guerrilha funcionaram.
Retornou para
sua terra (no Pernambuco). Desistiu da viagem para o Estado de Goiás. Alegava
que eles teriam um longo trecho pelo Estado do Piauí até chegar o destino
final.
Com pouca
munição, com alguns dias de fome e de sede, era melhor retornar. Próximo a
Remanso - BA encontraram abrigo, água e comida. Seguiu o futuro comandante de
Lampião para sua terra. Chegou por lá em março de 1920. Em passagem por Serra
Talhada-PE esteve com Lampião e seus irmãos Antônio e Livino. Mais tarde, outro
irmão entrou para o cangaço: Ezequiel. Muitas ligações entre Lampião e Sinhô
Pereira: eram vizinhos; a mãe de Lampião era afilhada do pai de Sinhô Pereira;
o pai de Lampião era afilhado do Padre Pereira, tio de Sinhô Pereira; as
famílias eram amigas; e com comuns inimigos: “Os Saturninos” e José Lucena.
Zé Lucena e Zé Saturnino
Em Gilbués-PI
(hoje município), vindo de Uruçuí-PI, Luís Padre soube do ataque ao primo. Mas
seguiu pelo cerrado piauiense rumo ao Estado de Goiás. Passou em Santa
Filomena-PI (hoje município). Já havia adotado um nome fajuto: José Piauí. Anos
depois, já em Goiás, Luís Padre comunicou ao Sinhô Pereira o lugar onde estava.
Seguro e sossegado. O cangaço na região Nordeste estava cada vez mais difícil.
Sinhô Pereira resolveu ir onde estava seu primo, e comunicou ao grupo. Lampião
disse que ficaria. Muitos cangaceiros ficaram com o futuro rei do cangaço, que
assumiu o comando do grupo. Ao despedir-se de Lampião, disse-lhe: “Vou deixar
umas brasas acesas por aí. Trate de apagá-las”.
Sinhô Pereira
deixou o cangaço (definitivamente) a 08 de agosto de 1922, e foi para Minas
Gerais. Anos depois se mudou para Goiás. Deu suas justificativas ao Nertan
Macedo, autor do livro “Sinhô Pereira: o comandante de Lampião”, que esteve na
sua casa em Minas Gerais, em 1975.
- Depois que houve
outro combate na fazenda Tabuleiro, de Neco Alves, na Paraíba, fronteira com
Pernambuco. De longe avistamos uns homens. Pensamos que fossem nossos
companheiros. Lampião ia à frente, com Livino e “Meia Noite” (cangaceiro). Os
soldados atiraram. Lampião perdeu o chapéu, ao pular para se livrar das balas.
Ao voltar para apanhá-lo tomou dois tiros, um na virilha e outro acima do
peito. Na hora ele saiu andando, mas não aguentou e caiu. Livino e “Meia Noite”
(cangaceiro) o arrastaram até um lugar seguro. Mandei chamar o Dr. Mota, amigo
da minha família, para examinar Lampião. Disse: “Nunca vi tanta sorte. Por um
triz a bala pegava a bexiga e a espinha.” Fizemos um rancho, onde ficamos até
Lampião poder andar. Depois do combate em que Lampião saiu ferido eu resolvi me
retirar daquela vida. Saí mais por causa do reumatismo, que me atacava tanto.
Tinha dia que eu não conseguia nem caminhar. Isso por causa das longas noites
passadas ao relento, na friagem do sertão.
Décadas
depois, Sinhô Pereira foi descoberto em Lagoa Grande, povoado de Presidente
Olegário-MG, sendo dono de uma farmácia. Com nome fajuto de Chico Maranhão. O
coronel Farnesi Dias Maciel foi quem deu abrigo e proteção ao ex-cangaceiro,
naqueles confins de Minas Gerais. Era irmão do falecido Presidente Olegário
(ex-governador mineiro), homenageado com o nome do município.
Maura
Eustáquia de Oliveira escreve no Jornal “O Globo” sobre Sinhô Pereira, nos anos
70:
- De Serra
Talhada, no sertão de Pernambuco, até Lagoa Grande, no sertão de Minas Gerais,
há mais de mil quilômetros de distância. Mas uma distância muito maior separa o
cangaceiro Sebastião Pereira, que Serra Talhada temeu em torno de 1916, do
farmacêutico Chico Maranhão, que Lagoa Grande respeita e venera desde 1923.
Sebastião
Pereira, ou Sinhô Pereira como era conhecido no cangaço, é sobrinho do Barão do
Pajeú, um dos mais influentes políticos pernambucanos do início do século.
Aderiu ao cangaço para vingar a morte de um irmão na rixa entre as famílias do
sertão e “para levar justiça a um povo que só conhecia a lei da força”. Um dia
recebeu entre seus homens o jovem Virgulino Ferreira – que mais tarde seria o
temido Lampião – a quem ensinou todos os segredos da guerrilha da caatinga e
depois fez ele seu lugar-tenente. Quando resolveu abandonar a vida de
cangaceiro, convidou seu compadre para sair junto. Mas Lampião preferiu a
caatinga.
Ao escritor
Nertan Macedo o ex-cangaceiro disse em 1975, ao recebê-lo em sua casa, sobre a
vida no cangaço:
- Era um tempo
ruim. Não tinha sossego. Era só desgraça, seca e miséria. Raro o dia, na
caatinga, que podíamos nos dar ao luxo de uma xícara de café. Tinha vez de nós
rompermos até 12 léguas (72 km) num dia. Um estirão danado. Nessas ocasiões, a
gente mal parava pra comer e descansar. Travessias fortes, perambulando de um
lado para outro. Enfrentava inimigos fortes e poderosos, ainda sofria dias e
dias de fome e sede. Eis a vida no cangaço. Quase todos do grupo tinham menos
de 25 anos (de idade)
Em 1920, mês
de junho, Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, entra para o cangaço a convite de
Sinhô Pereira. Foi seu comandante. Segundo ele próprio, sua entrada foi
motivada pelo desejo de vingar a morte do seu pai. O líder Sinhô Pereira
admirava-o pela sua valentia e por suas técnicas de guerras (era bom nisso). E
Lampião, sempre que necessário, demonstrava idolatria ao comandante e até
depois de sua saída fez tributo ao seu mestre, dizendo da sua admiração por
ele. O mestre-comandante de Lampião, conta sua vida no livro “Sinhô Pereira: o
comandante de Lampião”, de autoria de Nertan Macedo:
- Lampião era
de uma família humilde. Ele nasceu a umas três léguas (18 km) de São Francisco,
onde eu morava e seu pai fazia a feira e batizava os filhos. Conheci Lampião
desde menino. Ele e seus irmãos eram independentes e muito trabalhadores. A
questão dele foi de terra. Saturnino, pai de Zé Saturnino, queria tomar um
pedaço de terra da fazenda Serra Vermelha, de Zé Ferreira, pai de Lampião.
Houve uns tiros entre eles. Morreu um dos jagunços de Zé Saturnino, e Zé
Ferreira saiu ferido. Aí “Os Ferreiras” se retiraram para Matinha de Água
Branca, em Alagoas, onde ficaram sob a proteção do coronel Ulisses Lunas, em
1917. Eles estavam até destituídos de questão, quietos, trabalhando, quando em
1920 foram procurados por Antônio Matilde, casado com uma parenta deles, para
juntos perseguirem Zé Saturnino. Antônio Matilde tinha um grupo de homens.
Houve algumas lutas, morreu um sobrinho de Antônio Matilde e Casimiro Honório,
tio de Zé Saturnino. Depois disso, Antônio Matilde desapareceu, deixando “Os
Ferreiras” encrencados também com a polícia. Essa encrenca foi que provocou a
morte de Zé Ferreira, pai de Lampião.
Jozé Ferreira e Maria Lopes pais de Lampião - http://meneleu.blogspot.com/2014/10/a-morte-do-pai-e-da-mae-de-lampiao.html
- Depois da
morte de Casimiro Honório, o tenente José Lucena saiu em perseguição a Antônio
Matilde. Soube que Zé Ferreira estava na casa de um “Fragoso”, foi lá e matou o
velho. Antes havia matado Luís Fragoso, filho do dono da casa. Dona Maria José,
mãe de Lampião, morreu 19 dias depois de desgosto. Depois da morte de Zé
Ferreira, Lampião e irmãos juntaram-se com os irmãos Porcino, Antônio, Manuel e
Pedro. Mas foi por poucos dias. Então, saíram atrás de José Lucena. Tiveram um
encontro com um policial num lugar por nome Espírito Santo, fronteira de
Pernambuco com Alagoas. Morreu gente de parte a parte. O cabo (policial) foi
confundido com José Lucena e recebeu 12 tiros. A força (policial) era muito
grande. Eles não eram nem a metade. Aí eles fugiram, achando que tinham matado
José Lucena.
Pegando o
gancho, farei aqui uma leitura do cangaço; numa visão social. Lampião fez
história no cangaço tornando-se numa lenda. Seu nome está memorizado na memória
coletiva e no panteão da imortalidade.
Segundo fontes
bibliográficas, os três brasileiros mais biografados – todos com mais de 3000 livros
escritos sobre eles - são: Padre Cícero, Lampião e Luiz Gonzaga. Todos
nordestinos. Lampião, no caso aqui, foi a referência de mobilização para todos
esses grandes líderes existentes da arena da justiça social. Certa vez, o então
deputado federal Francisco Julião, representante das Ligas Camponesas e
militante político pela reforma agrária, declarou: “Lampião foi o primeiro
homem do Nordeste a batalhar contra o latifúndio e a arbitrariedade”. Assim
como muitos outros personagens da História, foi injustiçado pela visão
elitista. Os fatos históricos perderam lugar para as lendas.
O fato, é que
Lampião era um jovem normal e tranquilo que trabalhava para Delmiro Gouveia,
grande empresário da época. Sua revolta deu início a partir do dia em que seu
pai (José Ferreira) foi assassinado (em 1920) pelo sargento de polícia José
Lucena, por causa de um litígio com o vizinho José Saturnino. Naquela época a
honra andava lado a lado com a vingança. Recorrer a quem? À justiça dos homens,
muitas vezes manipulada pelo próprio coronelismo político? Não existia
democracia. Nem diplomacia. Agir pela via da violência não era um erro de
causa, era o meio mais sensato para o fim da dignidade moral.
Lampião foi um
idealista, um revolucionário primitivo, insurgente contra a opressão do
latifúndio e a injustiça do sertão nordestino. Um “Robin Hood”. Um justiceiro
popular. Ele sempre foi um homem justo, que comungava de valores de respeito e
de relacionamento social. Seu problema não era com o povo, nunca o perseguiu. E
sim, com os coronéis rurais (posseiros das terras), líderes políticos e
comerciantes que exploravam o povo com a carestia. Protestou contra todas as
mazelas sociais existentes na região Nordeste. Ensinou o povo a se indignar, a
mobilizar-se; ensinou-nos a importância da luta.
Sua imagem
revolucionária começou a se desenhar em 1935, ainda vivo, quando a Aliança
Nacional Libertadora – ANL citou-o como um de seus inspiradores políticos. Já
nos anos 20 era a referência para essa linha de atuação pela justiça social. E
provavelmente nos anos 10 o cangaço já representava o principal exemplo de
mobilização social. Existiram erros de causa por parte do cangaço. Isso é
inegável. Mas diante da grande obra da causa cívica e do mérito da história
desses brasileiros cangaceiros, são insignificantes.
Sobre a
referência social de Lampião, o historiador norte-americano Billy Jayner
Chandler escreveu:
- Os ingleses
vibram com os feitos de Robin Hood. Os norte-americanos contam as aventuras de
Jesse James. Os mexicanos, as façanhas de Pancho Villa. E os brasileiros, as de
Lampião.
O cangaço foi
importante e notório na luta pela liberdade e dignidade do povo sertanejo do
Brasil. Deu significativa contribuição para um país mais desenvolvido e menos
desigual socialmente. Vamos nos situar na região.
Imagine a
população sem renda que lhe oferecesse as mínimas condições de sobrevivência...
Um povo que fazia parte apenas da estatística nacional brasileira como
integrante da população. A exclusão social era total. Esses atores sociais
foram ardentes defensores da causa da justiça, e os principais intérpretes das
aspirações das massas. Foram líderes sociais. Heróis do povo brasileiro.
Marcos
Oliveira Damasceno, 30 anos, escritor. Natural de Dom Inocêncio – PI. Doutorado
em Filosofia Política. Diretor-Presidente da Produtora Sertão.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário