Por Geraldo Maia do Nascimento
Uma das
características dos índios Moxorós, que são apontados pelos historiadores como
os originários da história do povo mossoroense, era o espírito guerreiro. Essa
cultura da resistência acompanhou todo o desenvolvimento da nossa história. O
maior exemplo deste espírito de luta verifica-se na guerra travada por estas
bandas contra o mais famoso cangaceiro do Nordeste, o Lampião, que encontrou um
povo lutador e acabou sendo expulso dessas terras.
O feito se deu
em 1927 (século XX), segundo a história. Nosso município vivia um período de
prosperidade econômica. Estávamos em pleno expansionismo comercial e
industrial. Possuíamos o maior parque salineiro do país. Tínhamos três firmas
comprando, descaroçando e prensando algodão, casas compradoras de peles de cera
de carnaúba. Além disso, a cidade ainda dispunha de um porto, de onde eram
exportados os seus produtos atendendo cidades da região Oeste do Rio Grande do
Norte e até mesmo municípios dos estados do Ceará e Paraíba.
O cenário de
prosperidade foi fundamental para que atraíssemos a atenção de grupos criminosos
que invadiam e saqueavam cidades, prática comum naquela época. A população
estimada do município era de aproximadamente 20 mil habitantes. Nosso
território era ligado por uma estrada de ferro que se estendia desde o litoral
até o povoado de São Sebastião, hoje município de Governador Dix-Sept Rosado,
que já pertenceu à Mossoró.
Além de todos
esses atrativos, tínhamos boas estradas de rodagem, energia elétrica
alimentando várias indústrias, dois colégios religiosos, agências bancárias e
repartições públicas. Em pleno século início de século XX, os mossoroenses
viviam situação confortável. E tudo isso atraiu o mais temido cangaceiro da
época, Virgulino Ferreira, o famoso Lampião.
Hoje, sempre
que um grupo criminoso vai atacar uma cidade, seja uma agência bancária ou
outro tipo de estabelecimento de maior porte, é comum ouvirmos falar sobre
“informações privilegiadas”. Como são bandos formados por pessoas de outros
locais, eles precisam de ajuda de “gente próxima”. E Lampião tinha essa “gente
próxima”.
Com o porte
que Mossoró possuía, sua invasão precisava ser planejada. De acordo com as
pesquisas feitas pelos historiadores sobre o bando, o “Rei do Cangaço” era
apoiado por Cecílio Batista, mais conhecido como “Trovão”. Ele já havia morado
em Assu, onde havia sido preso por malandragem e desordem (crimes previstos
naquela época).
Além de
Trovão, Lampião contava com a ajuda de outro cangaceiro, José Cesário,
conhecido como “Coquinho”, que já havia até trabalhado em Mossoró e conhecia
bem a cidade. Outro importante parceiro fora Júlio Porto. Este havia trabalhado
como motorista de Alfredo Fernandes, personalidade rica da época e parente
próximo do prefeito Rodolfo Fernandes. Além de Júlio, o “Zé Pretinho”, tinha
ainda Massilon, um tropeiro que conhecia muito bem a cidade.
O plano de
invadir Mossoró é colocado em prática a partir do dia 2 de maio de 1927, ainda
segundo os documentos históricos. Lampião e seu bando partiram do estado de
Pernambuco, em direção ao Rio Grande do Norte. Fizeram um longo percurso.
Passaram pela Paraíba, próximo ao limite com o estado do Ceará, com destino à
cidade de Luís Gomes, que fica logo no início do estado norte-rio-grandense, a
201 km de Mossoró (o caminho mais curto).
A viagem não
foi pacífica. Por onde passavam, invadiam e saqueavam. A cidade de Belém do Rio
do Peixe, na Paraíba, por exemplo, foi uma das vítimas dos bandidos. Até então,
o bando estava dividido. Uma parte da quadrilha estava com Massilon, no Ceará.
Seu plano era atacar a cidade de Apodi, vizinha à Mossoró, em 11 de junho
daquele ano. Depois disso, o grupo de Massilon se reuniria com o restante,
liderado por Lampião, para definir um plano.
Os grupos se
uniram e a reunião aconteceu, como planejado, na fazenda Ipueira, que ficava na
cidade de Aurora, no estado do Ceará. De lá eles partiram com destino à
Mossoró. Como era prática entre os cangaceiros, aterrorizaram sítios, fazendas,
lugarejos e cidades durante o trajeto. Invadiam, saqueavam, ateavam fogo,
sequestravam (os mais riscos) etc.
Uma das
vítimas do bando de Lampião, antes da chegada à Mossoró, segundo constam nos
documentos históricos, foi o coronel Antônio Gurgel, que já havia sido prefeito
de Natal. O bando ainda fez refém o fazendeiro Joaquim Moreira, dono da Fazenda
Nova, em Luís Gomes, a fazendeira Maria José, da Fazenda Arueira, além de
outras pessoas ricas da região.
Foi o coronel
Antônio Gurgel que teve a missão de escrever uma carta endereçada ao prefeito
de Mossoró, Rodolfo Fernandes, em nome dos cangaceiros. Ousados, eles fizeram
uma série de exigências para que pudessem poupar os mossoroenses do terror que
vinham causando noutras cidades do Nordeste. Essa era uma tática tradicional
usada pelos cangaceiros.
De acordo com
os estudiosos do cangaço, era comum a utilização dessas cartas. Antes disso, os
criminosos adotavam uma série de providências para intimidar as autoridades e
dificultar qualquer plano de resistência. Eles cortavam os serviços
telegráficos da cidade, para evitar qualquer tipo de comunicação. Quando o
município resolvia ceder, o bando exigia, além de dinheiro e joias, mordomias,
submetendo o povo e os prefeitos a verdadeiras humilhações.
As pesquisas
mostram que os criminosos exigiam festas e bebidas para farras, que geravam
ainda mais destruição dos locais por onde o bando passava. Quando alguma das
cláusulas exigidas não era atendida, Lampião e seus comparsas procediam
impiedosamente.
Ao prefeito
Rodolfo Fernandes, os criminosos resolveram pedir 500 contos de réis. Era muito
dinheiro para a época. Por isso, chegaram a um consenso e pediram 400 contos,
conforme carta que transcrevemos logo abaixo, na íntegra, escrita pelo coronel
Gurgel:
Meu caro Rodolfo Fernandes.
Desde ontem estou aprisionado do grupo de Lampião, o qual está aquartelado aqui bem perto da cidade. Manda, porém, um acordo para não atacar mediante a soma de 400 contos de réis. Penso que para evitar o pânico, o sacrifício compensa, tanto que ele promete não voltar mais a Mossoró…”
Ao receber a carta, o coronel Rodolfo Fernandes convoca uma reunião. Convida
todas as pessoas de destaque da cidade. Ele informa o conteúdo da carta
ameaçadora e alerta para a necessidade da preparação de defesa contra um
possível ataque dos cangaceiros.
Os convidados,
no entanto, desprezando a força e ousadia do bando de Lampião, julgam que uma
possível invasão não poderia ocorrer, se tratando de uma cidade com o porte de
Mossoró. O prefeito ainda teria argumentado contra, mas não foi ouvido pelos
participantes. Assim, ele responde a carta escrita pelo coronel Antônio Gurgel,
a mando dos cangaceiros:
Mossoró, 13 de
junho de 1927 – Antônio Gurgel.
Não é possível
satisfazer-lhe a remessa dos 400.000 contos, pois não tenho, e mesmo no
comércio é impossível encontrar tal quantia. Ignora-se onde está refugiado o
gerente do Banco, Sr. Jaime Guedes. Estamos dispostos a recebê-los na altura em
que eles desejarem. Nossa situação oferece absoluta confiança e inteira
segurança.
Rodolfo Fernandes.
A resposta
seria entregue a uma pessoa enviada pelo bando de Lampião, à casa do prefeito
Rodolfo Fernandes, que logo afirma que a proposta feita pelo bandido não será
aceita pelos mossoroenses e manda avisar a Lampião que o povo está disposto a
enfrentá-lo, caso a invasão fosse executada (o que, de fato, houve). Mas antes,
resolve impressionar o mensageiro.
Rodolfo o leva
até um dos aposentos onde havia vários caixões com latas de querosene e
gasolina. Junto a esses caixões, existia um aberto e cheio de balas. O
prefeito, na tentativa de impressioná-lo, diz que todos aqueles caixões estão
cheios de munição e que já existe um grande número de homens armados na cidade,
aguardando a entrada dos cangaceiros.
Diferentemente
do que havia encontrado até então, Lampião deparou-se com uma resposta
negativa. Ao tomar conhecimento do posicionamento do prefeito Rodolfo Fernandes,
ele mesmo escreve um bilhete, segundo os historiadores, numa péssima grafia
(tal qual):
Cel Rodolfo
Estando Eu até
aqui pretendo drº. Já foi um aviso, ahi pº o Sinhoris, si por acauso rezolver,
mi, a mandar será a importança que aqui nos pede, Eu envito di Entrada ahi
porem não vindo essa importança eu entrarei, ate ahi penço que adeus querer, eu
entro; e vai aver muito estrago por isto si vir o drº. Eu não entro, ahi mas
nos resposte logo.
Capm Lampião.
Mais uma vez,
o prefeito responde com negativa, demonstrando a coragem do povo mossoroense.
Em novo escrito enviado ao cangaceiro, argumenta dificuldades financeiras:
Virgulino,
lampião.
Recebi o seu
bilhete e respondo-lhe dizendo que não tenho a importância que pede e nem
também o comércio. O Banco está fechado, tendo os funcionários se retirado
daqui. Estamos dispostos a acarretar com tudo o que o Sr. queira fazer contra
nós. A cidade acha-se, firmemente, inabalável na sua defesa, confiando na
mesma.
Rodolfo
Fernandes
Prefeito,
13.06.1927.
Diante da
situação, a invasão mostrava-se iminente e não restava o que fazer, a não ser
resistir. Apesar do medo, ampliado pelas histórias aterrorizantes que
circulavam a região acerca de Lampião e seu bando, os mossoroenses decidiram
preparar a cidade para a defesa.
O tenente
Laurentino era o encarregado de organizar o plano de resistência ao bando. Os
voluntários foram distribuídos em pontos estratégicos da cidade, escolhidos
criteriosamente para tentar surpreender os criminosos, utilizando a estrutura
local ao seu favor.
As torres das
igrejas matriz, Coração de Jesus e São Vicente foram utilizadas como pontos de
referência da resistência. Do alto, tinham visibilidade e podiam utilizar deste
elemento para levar vantagem sobre o bando, que viria por terra (onde também
encontrariam resistência organizada). Homens armados foram instalados no
mercado, correios e telégrafos, companhia de luz, Grande Hotel, estação
ferroviária, ginásio Diocesano e na casa do prefeito.
Do lado de lá
também havia certa organização. De acordo com os registros históricos acerca do
combate, Lampião pretendia chegar a uma localidade conhecida como Saco, que
ficava a uma distância de dois quilômetros de Mossoró. Neste ponto, eles
abandonariam as montarias e seguiriam a pé, até Mossoró, para concretizar a
temida invasão.
O cangaceiro
Sabino comandava duas colunas de vanguarda. Uma das colunas era chefiada por
Jararaca e outra por Massilon, enquanto Lampião liderava a coluna da
retaguarda.
Em meio à
preparação dos cangaceiros e dos resistentes, a população, assombrada, tentava
deixar a cidade. Crianças, mulheres e idosos, em sua maioria. Estes não tinham
condições de enfrentar os bandidos, de armas em punho, e precisavam fugir para
se resguardar.
De acordo com
os historiadores, o dia de junho ficou marcado pelo desespero da população, que
tentava sair da cidade o mais rápido possível. Mulheres chorando, carregando
crianças de colo, crianças sendo puxadas pelo braço, trouxas de roupa na
cabeça, balaios de comida e água etc. Era uma verdadeira multidão de pessoas
aterrorizadas, vagando sem rumo.
O que se via
eram famílias inteiras reunidas, completamente desesperadas, lotando os raros
caminhões ou automóveis que saíam disparados a caminho do litoral. Muitos, sem
condição de transporte, tratavam de conseguir esconderijo dentro ou fora da
cidade. A ordem dada pelo prefeito era clara: aquele que estiver desarmado, não
deverá permanecer na cidade.
O desespero
aumentava mais à medida que o dia avançava. Às 23h, os sinos das igrejas de
Santa Luzia, São Vicente e do Coração de Jesus começaram a martelar
tetricamente, o que só servia para aumentar a correria. As sirenes das fábricas
apitavam repetidamente a cada instante. Foi aí que alguns, ainda incrédulos com
a invasão, tiveram a certeza do que viria.
Na praça da
estação da estrada de ferro, era grande a concentração de gente na busca de
lugar para viajar nos trens que partiam de Mossoró. Até os carros de cargas
foram atrelados à composição para que a maior quantidade possível pudesse
partir. Apesar de todo o esforço, muitos não conseguiram fugir. Aqueles que
chegaram atrasados caíram no desespero.
Naquela
inesquecível noite de 12 de junho, não houve descanso para ninguém em Mossoró.
Os encarregados pela defesa da cidade se revezavam na vigília, enquanto o
restante da população esperava a vez de partir. E o movimento na estação
ferroviária não parava.
O embarque de
pessoal virou toda a noite e só terminou na tarde do dia 13 de junho, dia de
Santo Antônio, quando foram ouvidos os primeiros tiros, dando início ao terrível
combate. Mas a meta havia sido alcançada; a cidade estava deserta. Ficaram só
os resistentes.
Enfim, o bando
chegara à Mossoró. Diferentemente do cenário que costumavam encontrar,
deparam-se com uma cidade fantasma. Sabino, um dos líderes, segue com sua
coluna para a casa do prefeito Rodolfo Fernandes. A intenção era punir o
atrevimento do coronel que se recusou a ceder às pressões do bando e submeter
uma cidade inteira ao terror do cangaço.
Sabino
posiciona-se sozinho em frente à casa de Rodolfo Fernandes, sem saber que ali
havia um grupo pronto para reagir contra o bando. Os defensores da cidade ficam
indecisos, sem saber se ele é um soldado ou um cangaceiro, já que não havia
muito diferença entre a maneira de se vestir de um e de outro. Foi Rodolfo
Fernandes que deu a ordem para o ataque.
De acordo com
as pesquisas feitas sobre o assunto, os mossoroenses contaram ainda com “ajuda”
do céu. Em meio à guerra, uma chuva começou a cair, afetando diretamente a
visão dos cangaceiros, que estavam desprotegidos, a céu aberto, enquanto os
resistentes permaneciam inertes, nos pontos que foram estabelecidos
estrategicamente por Laurentino.
Lampião segue
em direção ao cemitério da cidade, enquanto que Massilon procura os fundos da
casa do prefeito. A primeira baixa significativa do bando veio com o disparo
que atingiu “Colchete”, que lançou uma garrafa com gasolina contra as
trincheiras feitas de fardo de algodão, na tentativa de incendiá-los. Foi
morto. Em seguida, Jararaca também foi baleado. Ele tentou se aproximar do
comparsa para substituí-lo e acabou sendo alvejado nos pulmões.
É nesse
momento que os resistentes mostram aos cangaceiros qual é a sua saída: fugir
para não serem completamente destruídos. Os soldados entrincheirados assumem o
controle da batalha, encurralando os cangaceiros. Aqui, a situação já está
totalmente dominada.
A ordem de
retirada do bando foi dada por Sabino, um dos líderes, ainda de acordo com os
registros das pesquisas realizadas acerca do tema. Ele saca sua pistola e
efetua quatro disparos para cima. Fim do ataque. Este foi o som da vitória dos
mossoroenses sobre Lampião.
O temido
confronto com o bando do mais famoso e temido cangaceiro do Nordeste durou
aproximadamente uma hora e meia. Começou por volta das 16h e acabou às 17h30.
Lampião, o destemido líder do bando, fugiu. Ele deixou para trás Colchete
(morto) e Jararaca, além de muitos outros, não tão conhecidos, que foram
feridos ou mortos durante o combate.
Precavidos, os
resistentes permaneceram aquela noite de plantão, temendo que o bando pudesse
tentar recuperar-se das perdas e voltar. Os combatentes suspenderam a vigília
somente com o raiar do dia, ao confirmar que o bando tinha realmente sido
expulso da cidade.
A história da
resistência do povo de Mossoró contra o bando de Lampião, que seguiu sua saga,
invadindo e saqueando, é lembrada todos os anos, no dia 13 de junho, que é o
Dia de Santo Antônio. Foi numa tarde chuvosa que os mossoroenses reafirmaram seu
espírito guerreiro, dando orgulho aos índios Monxorós, aqueles que deram origem
ao nosso povo.
https://defato.com/mossoro/94570/mossor-169-anos-a-histria-contada-pelo-historiador-geraldo-maia
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