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quinta-feira, 17 de outubro de 2024

LAMPIÃO...

 Por Antônio Corrêa Sobrinho

Foto de Joel Silveira

Em janeiro de 1938, foi anunciada pelos principais jornais do Brasil, a morte do cangaceiro Virgulino Lampião, dizendo ter sido de causa natural, numa fazenda em Sergipe, pertencente ao empresário e chefe político do município de Canhoba, Antônio Ferreira, mais conhecido por Antônio Caixeiro, pai do então interventor federal neste Estado, o capitão-médico do Exército, Eronides de Carvalho. O desmentido não demorou a ser publicado, mas não a tempo de evitar que o notável jornalista Joel Silveira emitisse suas impressões a respeito, uma demora suficiente para o jornalismo e especialmente o "Sergipe Jornal", pela exclusividade, serem premiados com esta aguda percepção a partir de um anguloso ponto de vista, que merece ser considerada porquanto nascida de uma mente que entendia muito de gente.

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LAMPIÃO, JOHN D. ROCKFELLER, BASIL ZAHOROFF E OUTROS…

Joel Silveira (Exclusivo para “Sergipe Jornal”)

O telegrama e o rádio me dizem que o cidadão Virgulino Ferreira morreu de uma forte hemoptise.

E eu, francamente, não sei o que deva pensar ou que deve sentir. Acho a alegria imprópria para o momento e sinto mesmo que, nesta hora, nada me alegrará. Se eu quisesse ser sincero diria o que na verdade estou sentindo: uma angústia estranha, um misto de tristeza e de decepção. Lampião, que morreu assim simplesmente, sem gestos de teatralidade, sem nada de mais que lhe viesse identificar entre o resto dos mortais, me deixa uma situação crítica. Eis aqui um grande problema para mim, se por acaso eu fosse um chefe de Estado. O que fazer diante do acontecimento? Dos Estados Unidos nos vem uma lição ótima que na certa poderia ser aproveitada aqui e com resultados. Vemos John D. Rockfeller glorificado depois de morto, vemos seu corpo baixar à sepultura coberto de flores e ao som de hinos sacros. Os shorts cinematográficos nos mostram retalhos de sua vida e de sua ação, jogando golfe, visitando poços enormes de petróleo, sorrindo numa expressão de múmia, endireitando os óculos negros e enormes, lendo, vivendo em plena glória dos seus noventa anos. E os jornais, os jornais do mundo inteiro que receberam dinheiro dele, estampam fotografias dos milhares de hospitais e das inúmeras escolas que o magnata espalhou pelo globo. Certamente que isto tudo representa uma cortina muito linda e muito útil. E se ficamos horrorizados com o drama e as tragédias que se passam do outro lado – guerras, ruinas, os hospitais inundados de vítimas do imperialismo, as escolas repletas de órfãos, viúvas que perderam os maridos na China, na Abissínia, no Chaco ou na Espanha, mães que perderam os filhos e filhos que perderam os pais – a culpa é exclusivamente da nossa curiosidade. A guerra, na ação mecânica de John D. Rockfeller, era um imperativo. Sendo um imperativo, por força era também uma necessidade. Da sua existência dependia a própria existência de Rockefeller. Sahoroff, esta cratera a vomitar, inesgotavelmente, material bélico sobre o mundo, sempre foi da mesma opinião. E os dois entendiam-se as mil maravilhas. Nunca poderemos sondar o mistério incomensurável e tétrico da ação destes dois homens sobre a terra. Suas vidas se confundem e se embaralham. Ninguém nunca soube direito de onde eles vieram, como surgiram, como nasceu este poder quase sobrenatural que encheu a vida de cada um.

Diante do espetáculo que a morte do nosso modesto Virgulino apresenta, o que eu tenho é uma bruta decepção. Entre Lampião e Rockefeller, entre o cidadão Virgulino Ferreira e o cidadão Basil Zahoroff, a diferença é unicamente de situação. Lampião, ao contrário dos outros, nunca proclamou a sua honestidade. Fez-se bandido, continuou bandido pela vida inteira, nunca desmentiu seus crimes nem ocultou suas ações criminosas. Perseguido a todo momento, seu combate havia se resumido numa trégua decisiva de vida ou de morte. Começou matando por vingança. Talvez depois por sadismo. Já no fim por necessidade. As fotografias que nós conhecemos dele nos apresentam um tipo asqueroso e vil. Os óculos pretos lembram os de Rockfeller. Mas não há, naquele tipo queimado pelo sol e constantemente ferido pelos projeteis e pelas urzes dos caminhos difíceis, a distinção que aqueles seus dois colegas sempre levaram em vida. Lampião podia possuir a sagacidade de um Vanderbilt ou de um Morgan. Mas ninguém colocará sua ousadia e sua coragem abaixo da de qualquer banqueiro europeu ou milionário americano. Nunca especulou na Bolsa. Seu campo era a campina, a caatinga, o sertão bruto e estéril. Não conhecia meios dúbios nem hipócritas. Sua intenção era matar, e realizava-a sem subterfúgios. No entanto somos forçados a reconhecer entre Lampião, Zahoroff e Rockefeller um mesmo ponto de afinidade: é que nenhum dos três enfraqueceu na luta. Resistiram até o último dia. Muitas vezes tombaram feridos, em plena batalha. Mas, pensados os ferimentos, ergueram-se e continuaram a luta.

Com a morte de Lampião, uma morte simples, indigna de um herói do século, o sertão perdeu muito de sua alma. E neste momento os mandacarus e as caatingas imensas devem ter o mesmo ar de tristeza que mora com os poços de petróleo dos Estados Unidos e as oficinas metalúrgicas da Alemanha. Tristeza de quem se vê abandonado, tristeza de órfão...

Aracaju-janeiro.

Sergipe Jornal - 13/01/1938

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