*Rangel Alves
da Costa
Um lenço
vermelho sobre a cabeça e se derramando rasgado pelos ombros até se misturar a
uma veste verde-escuro. Olhos grandes, vívidos, de castanho-esverdeado, como
que surpreendidos ou espantados. Cabelos castanhos em acaju, e no semblante de
pele clara queimada de sol uma menina estranhamente bonita. Filha da guerra,
filha do refúgio, filha da crueldade do homem para com os seus. Seu nome:
Sherbat Gula. Ou simplesmente “A Menina Afegã”. Uma órfã que desde a meninice
começou a conviver com os sofrimentos dos forçosamente deslocados para terras
estranhas.
Nesta
quarta-feira, 26/10, li no noticiário que Sherbat Gula havia sido presa. Para
melhor delinear a situação, informo que a prisioneira é aquela menina afegã,
com cerca de 13 anos, de olhos verdes, fotografada pelo jornalista Steve
McCurry da revista National Geographic, em 1984, mas com reportagem publicada
somente na edição de junho de 1985, então vivendo como refugiada no Paquistão.
A fotografia fora tirada em meio a meninas estudando no campo de refugiados de
Nasirh Bagh, na província de Peshawar, fronteira com o Afeganistão.
À época,
Nasirh Bagh havia se tornado o forçado lar para milhares de refugiados afegãos
que fugiam das atrocidades contra mulheres, velhos e crianças no seu país.
Desde a invasão soviética no Afeganistão (1979-1989) até a tomada do poder
pelos talibãs, num entremeado de guerras, guerrilhas e acossamento sangrento
das minorias, que o território paquistanês foi tido como lar distante para
deserdados, fugitivos e retirantes. Era neste campo paquistanês que a menina
Gula estava quando foi encontrada e fotografada pelo jornalista da National
Geographic.
É com Sherbat
Gula, pois, a mais famosa capa da famosa e prestigiada revista. Segundo afirma
Star Kaur, no site Café com Chai: “A imagem de seu rosto, com um lenço vermelho
enrolando sobre sua cabeça e com seus marcantes olhos verdes, olhando
diretamente para a câmera, tornou-se um símbolo e tanto do conflito afegão de
1980 e a situação dos refugiados em todo o mundo. A imagem em si foi nomeada ‘a
fotografia mais reconhecida’ na história da revista”
(http://cafecomchai.blogspot.com.br/2013/03/sharbat-gula-foto-que-deu-volta-ao-mundo.html).
A fama do
retrato, contudo, parece não ter acompanhado igualmente a fotografada. Após
retornar, vivendo no anonimato ao redor das montanhas afegãs, quando
reencontrada em 2002 pelo mesmo jornalista, recordava apenas ter sido
fotografada, porém sem jamais ter visto o seu rosto estampado na revista e
espalhado pelo mundo inteiro. Feita a devida identificação, uma nova fotografia
foi tirada, com ela já aos 30 anos, repetindo a mesma posição, porém nada que
revelasse a mesma beleza visual. Apenas uma moça triste, de olhar
espantosamente entristecido.
Gula já estava
casada, mãe de filhos. E logicamente esperançosa de poder criar os seus sem os
sofrimentos do passado. Mas os tempos difíceis no seu país, com a continuidade
das guerras, guerrilhas e perseguições às minorias, fizeram com que ela
retornasse, mais uma vez na condição de refugiada, ao Paquistão. Dessa vez se
deslocou trazendo os filhos. Mais uma vez imitava milhões de pessoas
desesperançadas que fogem do medo para viverem a ilusão da salvação em refúgios
pelo mundo afora.
Porém, ao
tentar esconder seu passado em nome de uma nova vida, incorreu em falsificação
de documento. Hoje com 46 anos, a menina de olhos verdes, apenas uma mulher de
olhos tristes, foi presa por autoridades paquistanesas. O seu retrato será
sempre aquele, mas seu futuro tão incerto quanto a de todos os desvalidos pelas
guerras, perseguições e assombrosos refúgios. O retrato de Sherbat Gula hoje
poderia novamente estampar a capa da National Geographic, mas com os seguintes
dizeres: eis a feição de um povo que sofre pela eterna maldade humana!
Deveras
lamentável o ocorrido não só com Gula, que foi transferida para uma prisão à
espera de julgamento e certamente será expulsa do país, mas com todos aqueles
que ainda convivem com a mesma situação de medo e fuga. Ao falsificar sua identidade,
fazendo-se passar por cidadã paquistanesa, a mulher talvez tivesse tentado
apenas viver com mais segurança e enfim poder afastar de si aquele eterno véu
de temor que sempre encobre as feições dos apátridas, dos renegados da sorte.
Um temor que infelizmente
ainda continua perseguindo milhões de pessoas. Os países conflagrados por
conflitos acabam expulsando principalmente aqueles mais frágeis e envelhecidos.
E estes, sem pátria, vão atravessando fronteiras, se lançando ao mar,
procurando a todo custo um meio de sobreviver. E nem sempre sobrevivem. Todos
os dias os jornais noticiam naufrágios no Mar Mediterrâneo e mortos como em
cardumes. Todos os dias os jornais dizem das desumanas condições de vida dos
que alcançam a terra firme para viver como refugiados.
Sherbat Gula
queria apenas esquecer o passado. Porém mais uma vez será expulsa do seu
refúgio. E novamente ser jogada na crueldade afegã. Novamente fugir pelas
montanhas até que seus olhos verdes percam toda a cor.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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