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sexta-feira, 17 de março de 2017

AS CONTRADIÇÕES DO SOLDADO 'NORATINHO' (O homem que disse ter matado Lampião)


Quando da manhã do dia 28 de julho de 1938, uma quinta-feira, um cangaceiro desce pelo leito seco do riacho Angico para ir encher alguns cantis com a água que estava empoçada no poço do Tamanduá.

Aproximando-se da poça d’água, “Amoroso” agacha-se para colocar água nos recipientes, nesse momento escuta um estouro que quase lhe estoura os tímpanos. Procura imediatamente um abrigo, pois em seguida a esse estouro vieram muitos e muitos outros.

Aspirante Ferreira de Melo ao lado do comandante do 2º batalhão, coronel José Lucena, na cidade de Santana do Ipanema, AL, na época do cangaço, um ou dois dias após as mortes dos cangaceiros.

Recebendo a ordem de seguir para a margem esquerda do riacho, o Aspirante Ferreira de Melo leva sua tropa para o lugar determinado. Chegando nele, desce a barreira, com parte dos homens e começa a subir o leito seco do riacho. Às vezes, devido o tortuoso ‘caminho’ que fizera as águas escavacando o terreno, eles ficam na margem direita, voltam ao leito do riacho novamente e, assim, seguem em direção sul. O cabo Bertoldo, que fazia parte da tropa do Aspirante, com a outra parte da tropa, segue por sobre a margem esquerda, dando cobertura ao comandante que avançava pela parte baixa, sempre subindo no sentido sul. Como era para dar cobertura, não procuraram fazer vanguarda. Em determinados momentos estavam na retaguarda e logo em seguida, dependendo do terreno, na mesma linha em que estavam seus companheiros de farda.

Comandante geral da PM das Alagoas, na época do cangaço, coronel Theodureto Camargo, abraçando o aspirante Ferreira de Melo, quando este chega em Santana do Ipanema,ALl, após a morte dos cangaceiros no Riacho Angico.

Os homens que estavam com o Aspirante, alguns ligeiramente adiantados, notam a vinda de um cangaceiro no sentido contrário em que iam. Não tendo mais alternativas, escondem-se por trás das pedras que existem ao longo do leito do riacho. O cangaceiro chega muito perto deles. Escora sua arma numa moita, ou numa pedra, e abaixando-se está com um cantil na mão. Um dos três militares, não espera mais. Aponta seu fuzil e faz fogo no cangaceiro. À distância em que estava o cangaceiro não passa de 10 (dez) metros, e mesmo assim, não sabemos se por falta de tempo, calma ou mesmo nervosismo do soldado, esse erra o tiro.

Tropa comandada pelo tenente João Bezerra quando do retorno do ataque aos cangaceiros na Grota do Riacho Angico. Este registro é citado por alguns autores como fora feito em frente à sede da Prefeitura na cidade de Piranhas, AL. Detalhe: essa tropa está desfalcada. No ataque aos cangaceiros, no coito do Riacho Angico, a força tivera uma baixa. Morreu o soldado Adrião. Alguns autores citam que fora vítima de 'fogo amigo'.

Um pouco atrás do cangaceiro que vinha encher os cantis, vinha a ‘Rainha do Cangaço’, Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa. Ela estava com uma vasilha na mão. Era uma ‘banda’ da embalagem de queijo do reino. Com certeza vinha para pegar água e, talvez lavar-se, ou levar água para a tenda onde tinha passado a noite.

Tolda do 'rei dos cangaceiros' entre as pedras do Riacho Angico.

Um instante após se ouvir o disparo que o soldado Abdon Cosme dos Santos disparou no cangaceiro Amoroso, sem dar tempo de Maria de Déa entender nem saber de onde partira, é atingida por um projétil disparado pelo soldado José Panta de Godoy, em seu abdômen, com o impacto em seu corpo cai no chão pedregoso do leito do riacho. Com muita dor, porém, o instinto de sobrevivência a faz esquecer-se da dor, ergue-se rapidamente e, virando-se, inicia uma ‘fuga’ em direção onde achava estar à salvação, sua tolda, onde estava seu companheiro, o cangaceiro Lampião, o “Rei dos Cangaceiros”. No entanto, ao virar-se, recebe outro balaço nas costas vinda da mesma arma do soldado Panta. Estatela-se de bruços por sobre os pedregulhos, e dessa vez não tem condições físicas de erguesse para continuar tentando salvar sua vida.

Soldados da tropa do aspirante Ferreira de Melo. Detalhe: Vemos o cabo Antônio Bertoldo, o soldado Santo e o soldado 'Noratinho'. faltando para nós a identificação do quarto soldado.

O soldado da tropa do Aspirante Ferreira de Melo, Antônio Honorato da Silva, por todos conhecido pela alcunha de ‘Noratinho’, após as mortes dos cangaceiros no leito do riacho Angico, não sabemos se por uma simples vaidade, por um momento de distração ou mesmo por mais uma mentira, pois, daquelas mortes e daquele ataque temos milhares de mentiras, tomou para si a morte do ‘Rei dos Cangaceiros’.

Neblina ao romper da aurora na Grota do Riacho Angico. - Foto Sálvio Siqueira

Vejamos o que diz o soldado sobre quem matou Lampião:

“Eu e mais cinco soldados teríamos que ultrapassar a gruta para dar início ao ataque. Quando encontramos um local propício à escalada, subimos ao alto e logo avistei, à frente de uma barraca, um sujeito alto, trazendo uma faca presa no peitoral e, em volta dos ombros, um laço (lenço), à moda sertaneja. Não tive dúvidas: apontei meu mosquetão e varei o tipo com uma bala. A esse primeiro tiro, sucederam outros, de fogo cruzado. Depois vi uma mulher correndo de um lado para outro, até que se debruçou sobre o corpo, indiferente às balas que silvavam de todos os lados. Parecia desesperada. Mirei e fiz fogo: ela tombou mais adiante. Era Maria Bonita a bela mulher do bandoleiro.” (Revista Edição Extra – 1962)

Noratinho passou muito tempo contando como teria dado fim ao ‘Rei do Cangaço’ e sua ‘Rainha’. Confrontando os depoimentos de sobreviventes que sofreram o ataque, e daqueles que também fizeram parte do ataque, principalmente da tropa do Aspirante Ferreira de Melo, pois foi essa tropa quem matou os cangaceiros, essa versão não encaixa. Todos citam como sendo os três primeiros disparos, o primeiro do soldado Abdon no cangaceiro Amoroso, o qual erra, e os outros dois, disparados por Panta de Godoy, justamente na companheira de Lampião. Após esses disparos, o mundo se fechou e a tropa atirou muito. Como o chefe Lampião, o restante dos cangaceiros não faz nenhuma resistência. Ninguém do bando contra-ataca.

O soldado Antônio Honorato da Silva, o 'Noratinho', mostrando sua arma ao jornalista Melchiades da Rocha.

Pode até ter saído da boca do mosquetão do soldado ‘Noratinho’ a bala que atingiu Lampião, mas, sem ser como ele contou. Assim como, pode ter saído da arma de qualquer outro da tropa do Aspirante Ferreira de Melo. Como ninguém se atreveu, ‘Noratinho’ toma para si a autoria de ser o homem que matou Virgolino Ferreira, levando para o túmulo essa versão quando fora assassinado. 

Hoje, com as novas pesquisas, fica mais que esclarecido que não fora como ele narrou ter sido.

Zé Sereno com seu grupo, ou subgrupo, como queiram, que estava acampado na parte alta, em cima da barreira, distando uns sessenta metros de onde se encontrava a tolda de Lampião, e daqueles que estavam acampados dentro da grota, essa distância é no sentido diagonal, pois se tirarmos uma ponto reto, traçando uma linha reta, para cima da barreira, e daí outra linha para onde estavam Sereno e seus ‘cabras’, essa distância diminui, se arranca, a muito, contrário à direção tomada pela volante, no sentido contra a correnteza do riacho, ou seja, na direção sul, contrário a margem direta do “Velho Chico”.

O Aspirante Ferreira de Melo, em entrevista ao Jornal Gazeta de Alagoas, em 1965, falando ao jornalista sobre a morte do “Capitão Lampião”, disse:

Um delegado, um jornalista, Pedro de Cândido e Durval seu irmão, mais outras pessoa e soldados na Grota do Riacho Angico, próximos a um corpo sem cabeça, no chão pedregoso. Citam alguns autores que esse é o corpo de Maria de Déa, a Maria Bonita, 'rainha dos cangaceiros'. Detalhe: tem uma pessoa que está com um balde nas mãos. Provavelmente este recipiente foi para transportar a cal para ser colocada sobre os corpos que já estavam em estado de putrefação.

“Lampião já estava de pé e recebeu apenas uma bala, conforme eu já disse, cuja bala ninguém pode afirmar com segurança de que arma partiu. Na época, foi muito comentado que o projétil que atingiu o companheiro de Maria Bonita, teria partido da arma empunhada pelo cabo Honorato, conhecido por Noratinho. Todavia, ninguém poderia precisar, em meio ao fumaceiro, às apreensões e à balbúrdia do momento, que esse ou aquele policial tivesse atingido o nosso terrível adversário. O verdadeiro, no duro, é que foi a minha tropa que exterminou Lampião. Esta é a verdade.”

Cabeças dos cangaceiros, perfiladas. Provavelmente essa captura tenha sido em Pinhas - AL. Notemos as condições em que se encontram as cabeças, ou seja, sem nenhuma deterioração. Detalhe: na fileira de baixo, a última cabeça da direita, na captura, é tida como 'desconhecido'. no entanto, hoje, já sabe-se que trata-se do cangaceiro 'Luiz de Thereza'.

No pandemônio que tomou conta do acampamento, um soldado vai seguindo os companheiros e de repente ver um cangaceiro contorcendo-se pelo chão. Esse soldado aponta sua arma e atira, acertando a cabeça daquele cangaceiro que estava a ‘estrebuchar-se’ no pedregoso solo daquele riacho. Essa narração é feita pelo militar José Panta de Godoy.

A lua, vista da Grota do Riacho angico, no mesmo local onde estava a tolda do "rei dos cangaceiros". foto Sálvio Siqueira

“(...) Foi neste momento que o soldado José Panta de Godoy ao aproximar-se, embora sem saber a sua identidade e, parcialmente obstado pelo soldado Sebastião Vieira Sandes, o Santo, desferiu o tiro de misericórdia na cabeça de Lampião (...).” (“Lampião – Sua morte passada a limpo” – BASSETTI, José Sabino e MEGALE, Carlos César de Miranda. 1ª Edição. Janeiro 2011).

Multidão veio recepcionar a chegada do caminhão com a tropa, ou parte dela, à cidade alagoana de Santana do Ipanema, transportando os troféus funestos, as cabeças dos onze cangaceiros mortos na Grota do Riacho Angico.

Como o soldado Antônio Honorato da Silva, o ‘Noratinho’, muitos disseram suas mentiras, tanto aqueles que sobreviveram como aqueles que fizeram parte da tropa que atacou o coito no riacho da fazenda Forquilha. Mas, na medida do possível, vamos levando aos amigos as revelações das mentiras. Tanto dos ex cangaceiros, e ex cangaceiras, como dos ex volantes e comandantes destes. Porém, mesmo estando em busca, sabemos que não somos dono da verdade... Deixamos para os amigos tirarem suas conclusões.

Foto Sálvio Siqueira
A Noite

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